Apesar da nossa vitória, o que nos diz a estátua racista do Hotel Portugália?

Apesar da nossa vitória, o que nos diz a estátua racista do Hotel Portugália?

Num vídeo encomendado, que pode parecer cobarde, o Hotel Portugália mandou uma voz miseravelmente ostensiva anunciar a remoção da estátua que, segundo aquela voz, não era nada racista. Embora patético, isso não é necessariamente uma negação, é certamente a consequência da alienação, da obliteração. E o orgulho colonial ou colonialista extraviado levou o hotel a não cogitar a possibilidade de divulgar um comunicado oficial, a admitir o seu erro ao expor a estátua no seu átrio e a fazer um mea culpa consciente. Não, isso não é algo que a cultura colonial de baixo nível ensinou aos seus guardiães. Aliás, é mais ou menos uma atitude semelhante à que vimos recentemente com o Governo, que decidiu responder com silêncio desdenhoso aos milhares de manifestantes da província do Zaire – avós, mães, pais, filhos e netos – que saíram às ruas em 15 de maio para gritar a sua insatisfação com a discriminação institucionalizada que enfrentam no seu próprio país.

Esta província enriquece a todos menos a si mesma e inclusive financia a comunicação social que se negou a falar da sua mobilização. Mas dizemos de boca cheia que queremos “Melhorar o que está bem e corrigir o que está mal”. O que então podemos realmente esperar de um país com uma elite que sofre de uma profunda falta de africanidade, criada e alimentada voluntariamente? Entre os que vão à televisão – e em nenhum país normal seriam considerados intelectuais – dizer que ainda se perguntam se a colonização foi mesmo uma coisa má e uma vice-ministra da Saúde, Teresa Cohen, que se acha branca, que diz abertamente coisas racistas, como consta, por exemplo, do livro de Domingos Da Cruz, “Racismo: O Machado Afiado em Angola”, que por si só retransmite as palavras do livro “Em Nome do Povo” da jornalista britânica, Lara Pawson, então correspondente da BBC em Angola, a quem a nossa vice-ministra, Teresa Cohen, disse, ao vê-la abordar os angolanos negros que ela queria entrevistar após o acidente de Antonov no Cazenga em 1999, « estes negros não são como nós os brancos.

Afastate”, e outros ainda, que viveram a vida toda tentando ser brancos – pelo menos não africanos, talvez Negros de longe, principalmente das Caraíbas ou da América Latina -, que hoje se sentem repentinamente movidos pela culpa por não terem feito nada pela Negritude (além de se vestirem de bubu) e agora procuram defender a sua memória para a posteridade antes do último sono, como podemos reclamar legitimamente do que aconteceu no Hotel Portugália, que em termos absolutos é apenas uma consequência, bastante normal, de um modo de viver de um mundo colonizado que se construiu para continuar a colonização e que nunca pensou que um dia seria questionado? Pois bem, para os mais lúcidos entre nós, o caso desta estátua revela o real estado mental da elite do nosso país em termos de imaginários. Com isso, vemos até que ponto uma elite desprovida de amor pela África negra, que por exemplo permitiu que o comerciante de fé, Edir Macedo Bezerra, entrasse no nosso país, que dizia diante dela que os Negros descendiam dos macacos, não está equipada para nada que possa aumentar a dignidade do nosso povo. Desde então, após o lançamento do nosso abaixo-assinado pedindo a retirada da estátua racista do hotel, tenho recebido mensagens de uma sinceridade comovente, como esta: “Desculpa mano, mas não vejo essa imagem do Arcanjo Miguel como uma expressão de racismo.

Esse maravilhoso arcanjo, príncipe das milícias celestes transcende todos conceitos e preconceitos humanos e defende-nos nas grandes batalhas que o maligno trava contra nós. Por outro lado, acho uma prepotência das autoridades, que eles obriguem o dono do hotel a retirarem a dali a imagem do Arcanjo por quem tem tanta devoção. Até Deus respeita o nosso livre arbítrio e jamais atenta contra ele. O racismo é odioso, vergonhoso, mas não é pela força que ele deve ser combatido. Demos nós mesmos, provas de fraternidade e amor uns aos outros, sem olharmos para as cores da pele, religião, credos, e não haverá mais racismo. Essa é a minha sincera opinião”. O que podemos responder a uma mensagem tão sincera mas preocupante? Nada. Mas tenho consideração pela pessoa que ma enviou e sei de que mundo é. É precisamente porque vem daquele mundo que pensa que eu também, oriundo da Angola profunda, da África que eles não conhecem que ainda sabe que os seus antepassados tiveram outra relação com o seu Deus e que os seus anjos não eram brancos, decidi responder-lhe, por meio de uma pergunta simples e directa: “Conheces a origem desta imagem?”. Nunca recebi uma resposta até agora.

Qual é o significado fundamental de tudo isso? Significa isto que a colonização, que até à Independência tinha apenas proporções marginais, foi generalizada por uma elite irresponsável, o que a levou a atingir níveis vertiginosos de alienação que a história dos angolanos irá julgar com maior severidade. E sim, vai haver uma história de Angola, está a ser escrita, por outros cérebros, mais bem preparados e mais honestos. Esta história contará quem é quem e o desamor de alguns pela África negra. Esses cérebros emergentes já estão a perguntar porque é que aqueles que receberam a Independência de Portugal proibiam crianças como eu de não falar a sua língua na escola. Estes cérebros vão querer explicar porque é que os nossos artistas, mesmo os mais talentosos, só conseguem ver beleza na pele clara e porque em Angola só as mulatas são mulheres.

Estes cérebros terão de explicar o percurso que nos levou a ter este país de papelão que temos, que desabaria com as questões mais sumárias, porque, na sua forma mais feia, encontramos a pior caricatura de Portugal. Esses novos cérebros também terão que nos dizer porque é que a nossa elite pode ter tanto prazer em não se identificar com a África negra e em ser, como diria Aimé Césaire, o brinquedo sombrio no carnaval dos outros e, nos campos alheios, o espantalho obsoleto. Infelizmente, o vento não está mais a girar na sua direcção, os sinais dos novos tempos mostram que o advento do Homem é agora. O Homem simplesmente, o Ser Humano na sua essência.

O que será deles então? É por isso que os mais espertos já estão a reposicionar-se e, de repente, a proclamar a sua negritude e o seu amor pela África negra! E outros já me dizem que são mais africanos do que eu, da mesma forma que me diziam que eram mais angolanos do que eu. Não importa! O que é certo, especialmente nesta semana de África, é que a minha geração percebeu que a sua missão é grande. E ela vai assumila, como Fanon recomendou. Para ampliar a Humanidade e difundir um maior reconhecimento de cada Ser Humano. Não pediremos à nossa “elite” que seja o que não pode ser. Será o que é, pois a cultura e os hábitos dão os seres. Mas ela aprenderá a viver em igualdade e aprenderá connosco se o considerar útil para o seu alargamento. Ela foi mutada, como sabemos, transformada, obliterada na essência e assim vive feliz, consciente ou inconscientemente, pouco importa se vê o mundo com olhos que não são os seus. A nossa missão é árdua, mas bela, e será cumprida.

POR: Ricardo Vita