Um símbolo artístico que se divide entre a estética, a vaidade, a aceitação, o temor e a aversão

Um símbolo artístico que se divide entre a estética, a vaidade, a aceitação, o temor e a aversão

Trata-se de uma prática secular, inventada diversas vezes, em diferentes momentos e lugares do planeta. De um lado, a ornamentação estética da pele é para alguns considerada apenas mera vaidade e, por isso, é aceite. Do outro, a quem manifeste ter aversão às tatuagens. Do ponto de vista técnico, o antropólogo Adilson Fontoura considera que ela expressa uma busca, ou um exercício, de autonomia pessoal, conceito relacionado ao de individualismo e de experimentação

Aplicar uma tatuagem é, para alguns dos nossos interlocutores, um símbolo de estética, que dá outro colorido ao corpo. Para outros, significa sinal de pertença com um significado cujo valor é intrínseco ao seu personagem. Há quem não o faça com medo de vir a contrair uma doença transmissível por via dos artefatos que são utilizados para sua feitura. Há quem também nos tivesse dito que não o faria nunca, uma vez que há empregadores que não admitem, no seu grupo de colaboradores, profissionais tatuados.

Numa ronda por nós efectuada, entre o município de Talatona e o distrito urbano do Benfica, ambas adstritas à província de Luanda, podemos constatar que há cada vez mais procura pelos serviços dos tatuadores, apesar dos receios face ao contexto que o mundo agora enfrenta, como nos confidenciou o cidadão de origem asiática identificado apenas por Alex Tattoo, o tatuador em serviço, que diz receber entre 10 a 15 pessoas diariamente no seu local de trabalho.

Mas o que quisemos saber são os motivos de quem procura, por que razão procura por uma ornamentação no seu corpo. Também falamos com quem não se identifica com esse tipo de desenhos, todavia nada têm contra quem assim proceda. Por outro lado, a quem mesmo tenha aversão por tatuagens por representar em alguns sectores símbolo de gangues marginais, de prostitutas bem como de pessoas sem qualquer ambição profissional como são seguidos os padrões socialmente aceites.

Orlando Rafael tem tatuagem no seu braço esquerdo, a clave musical “Sol”. Questionado por que razão, salientou que gosta de tatuagens para, de certa forma, marcar no seu corpo símbolos e nomes que têm um grande significado para si. “Isso é algo histórico, desde o antigo Egipto, alguns guerreiros tatuavam as suas batalhas enfrentadas”, argumentou.

A profissional de comunicação e advogada Tchicundi Livuvu disse, por seu turno, que, para ela, as tatuagens acabam por representar a arte, diferente, mas que marcam o corpo humano. Sendo bem-feita, ela tem um significado estético para quem observa, assim como para a pessoa em cujo corpo é tatuado.

“Independentemente dos estereótipos em torno das tatuagens, elas têm um significado muito grande para as pessoas. Muitas vezes significam vivências, sofrimento por que passamos, dores, tentar eternizar alguém, enfim, são inúmeros os significados dado a elas, depende muito de pessoa para pessoa”, aponta.

Ela contou-nos, por exemplo, que, durante muitos anos, passou por um problema de depressão e, neste momento, encontra-se em estado de convalescença. Por isso, tatuou o “unalome”, um símbolo budista que significa o caminho para iluminação. Igualmente tem os nomes da mãe e da avó no braço para além de as homenagear, manifestar a presença na vida dela todos os dias.

Embora não nos revelasse os locais em que estão as suas tatuagens, a publicitária Nadine Lavrado garantiu- nos ter várias, pois, para si, significa arte, como sendo uma forma de expressão de sentimentos, vivências, uma maneira de eternizar momentos, frases marcantes, pessoas marcantes e ainda um jeito de contar uma história. “Não altera em nada o meu modus vivendi, a minha capacidade cognitiva, a forma como olho o mundo. Existem sociedades em que a tatuagem é comum para enfeitar as mãos de mulheres, principalmente de noivas, como é o caso da Henna. Já em outras, a tatuagem é uma forma de expressão, um estilo de vida. Entretanto, ainda existem sociedades onde a tatuagem está ligada ao crime, e daí todas as pessoas aquém do crime serem consideradas libertinas”, justificou.

Télio Fernandes encontrámo-lo precisamente no estúdio enquanto aguardava pela sua vez, sendo motivado pela correção de uma tatuagem feita há 10 anos. O engenheiro de petróleos de 34 anos começou por conceituar o acto de tatuar como sendo o registo de um momento positivo ou simbólico, com algum significado singular, no próprio corpo.

“Tatuei um leão que representa a minha bravura, os passos que tive que dar na vida para conseguir o que consegui. Nós somos autónomos. Depois dos 18 anos, a gente acaba por adquirir a idade adulta e não aconselho ninguém a fazer uma tatuagem só por fazer, até porque há trabalhos que não permitem pessoas que tenham. Portanto, as pessoas devem saber porquê que estão a ir fazer”, aconselhou.

Nem uma ou outra

Fora de advertências e do estúdio profissional, a nossa reportagem conversou e ouviu outros depoimentos de individualidades que não têm uma tatuagem, mas não olham com aversão às mesmas, como é o caso de Alfredo Neves, escritor e ex-seminarista que responde pelo pseudónimo Alsejo Pinheiro.

Pinheiro não possui tatuagem, porém sustentou que cresceu tendo um pensamento errôneo sobre as tatuagens, porque, durante muito tempo, as pessoas ao seu redor o instigaram a crer que quem as usa são pessoas marginais, no caso de se tratar de homens, ou prostitutas, no caso de mulheres.

O interlocutor disse que, ao longo dos últimos anos, aprendeu a ter uma outra mundividência, sobretudo depois de ter lido um pouco mais sobre as tatuagens, agora a sua perspectiva é outra. “Hoje, quem tem uma tatuagem, eu acho muito normal e acredito que vou ter uma no próximo ano”, terminou com um sorriso estampado.

O antigo seminarista explicou que acredita que Deus não se revolta com quem simplesmente coloca uma tatuagem no seu corpo, mas sim com aqueles que ferem a integridade de outrem. Neste ângulo, a fonte acrescentou:

“Eu sou católico e tencionava vir a ser consagrado sacerdote. Mas, esta é uma história longa. Portanto, as pessoas vêem Deus como um indivíduo condenador, desfiz isso da minha mente e creio que Deus me manda estar bem comigo mesmo, sem ferir os outros. Devo fazer o bem, não porque há um paraíso, mas porque quero fazer o bem. Ninguém faz uma tatuagem por nada, é porque tem alguma importância, tem um significado. Entretanto, uma tatuagem não faz mal a ninguém”, rematou

Satânico e prejudicial à saúde

Do outro lado da barricada, encontramos o jovem Loid Fernando, que considera abominador o uso de tatuagem, porquanto, no contexto histórico, o uso de tatuagens servia para marcar os escravos e, actualmente, serve de marca a membros de uma gangue e a fazer pacto satânico.

“Por questões de saúde, eu acho a tatuagem uma ameaça ou risco para saúde, porque, quando você aplica uma tatuagem sobre a pele, automaticamente, você injecta substâncias químicas no sangue, tais como chumbo, que, quando se encontra em nível elevado, podem causar sérias complicações à saúde”, justificou o interlocutor.

Medo

Por seu turno, Lili Jandira, dona de casa, de 27 anos, sustentou que não tem uma tatuagem, se calhar por medo e risco de contrair uma infecção, mas que, se um dia sentir a necessidade de colocar, o fará, pois acha charmoso e simbólico.

“Há materiais que alguns tatuadores utilizam que podem não estar bem esterilizados, isso pode, eventualmente, ser prejudicial à pessoa que quiser tatuar. Mas isso não tira a beleza e o desejo de um dia vir a ter uma tatuagem”, aferiu.

Não combina com a espiritualidade

Neste emaranhado de opiniões distintas, baseadas em achismos, predileções ou até mesmo modismo, não se pode banalizar a postura de Deus perante o assunto em cartaz. Neste sentido, o pastor Augusto José aclarou-nos que nem tudo se encontra tipificado como pecado nas sagradas escrituras, mas que algumas coisas, quando observadas com os ‘olhos de Deus’, de facto, muitas não o agradam.

“As tatuagens, e toda ou qualquer alteração ou perfuração feita no corpo humano, como piercings, trata-se da implementação de algo que não combina com a espiritualidade que Deus quer de nós. E o livro de Timóteo exorta sobre o modo como nos apresentamos perante a Deus, temos que ser naturais, tal como Ele nos criou” e desenvolveu o ‘homem de Deus’.

O pregador das boas novas do Senhor finalizou explicando que a tatuagem é uma iniciativa de Satanás, não é um proceder que agrada ao Altíssimo, por estar associada às coisas do mundo carnal, não espiritual e que não tem nada a ver com as atitudes que o criador espera dos seus filhos.

Antropólogo contextualiza

O antropólogo Adilson Fontoura contextualizou a nossa abordagem sobre as opiniões opostas ao uso de tatuagem que, para alguns, representa sinal de pertença, além de ser um mergulho às várias antropologias desde a cultural até à da estética.

Segundo o académico, a antropologia busca o diferente, a alteridade para que possamos percorrer caminhos que nos aproximam de nós mesmos, das nossas perguntas e das nossas procuras.

Daí que a prática da ornamentação da pele está associada à própria presença do homem. Assim, a tatuagem parece ter sido inventada diversas vezes, em diferentes momentos e lugares do planeta, em todos os continentes, com maior ou menor variação de propósitos, técnicas e resultados.

Acredita-se, diz Adilson Fontoura, que ela derive das cicatrizes corporais, ou seja, o homem passou a gostar de marcar seu corpo, inicialmente para assinalar factos da vida, como nascimento, puberdade, festas, rituais de passagem, pessoas condenadas e todas outras manifestações culturais de uma comunidade, família, entre outros.

“Muitos tatuados herdaram o gosto no ambiente familiar e social. Muitas comunidades no mundo e, em particular, em África usaram a tatuagem como símbolo cultural. Para dar um exemplo, as figuras rupestres do Tchitundo-Hulo, no Namibe, foram usadas, muitas vezes, pela comunidade no sentido de reforçar a pertença cultural e mostrar a bravura do povo”, apontou.

O também professor de Antropologia Cultural foi mais além dizendo que os Kwuepes usam figuras de facas e cortes de cabelo para identificar a fase adulta entre os demais membros da comunidade.

“Hoje, os jovens deram outros contornos à tatuagem, tornando-a mais ornamentada, decorativa e com outros significados, como por exemplo os nomes dos pais, filhos, esposas, rostos de figuras de destaque para a vida do tatuado”, explicou.

Negócio

A partir do seu ingresso no mundo do mercado, tendo-se convertido num produto de consumo, “legitimado socialmente”, realça Fontoura, com base na sua nova fachada e apresentação social, que são as lojas de tatuagem, essa actividade passou a ser encarada de maneira mais profissional e artística, tornando-se parte das opções estéticas procuradas pelas novas gerações.

Como normalidade, a prática contemporânea da tatuagem contém muito mais do que meros elementos de impacto social e é muito mais do que um fenómeno de moda. A tatuagem executada sobre os jovens de 18 anos passou a ser vista como um transtorno, porque sempre que são chamados a cumprir uma missão ou trabalho em alguns sectores públicos e ou privados não são aceites.

“O individualismo na juventude incorre em elementos como o valor dado à autonomia, à diversão e à experimentação, bem como ideias de escolha, auto-realização e autenticidade. No caso da tatuagem, é necessária uma leitura conjunta sobre individualismo e usos do corpo. Em meu argumento, a tatuagem entre alguns jovens tanto quanto entre algumas mulheres expressa uma busca ou um exercício de autonomia pessoal, conceito relacionado, conforme visto, ao de individualismo e de experimentação”, aditou.

Por essa razão, conclui Adilson Fontoura, o corpo pode ser, nestes casos, um dos espaços desta experimentação, tanto quanto da marca desta autonomia, assim como a auto-realização, a experimentação e a autonomia passam pelos usos que o sujeito faz de seu corpo.

Jorge Fernandes e Valdimiro Graciano