O espontâneo diálogo

A alteridade sonora evidencia que o Dono da Viatura conserva a paciência de seleccionar as músicas devidamente com o pensamento virado aos passageiros. Na velocidade do Toyota Hilux, o resto dos colegas de viagem, uns quatro com o motorista, está acoplado ao aconchego, qual costume. As cadeiras empertigadas, dando-nos um ar cômodo, revelam isso. Saímos, acompanhados por um vento madrugador. Estamos em Maio, daí as portas do carro fechadas. O acto veloz não nos permite observar o arvoredo lateral, via janela envidraçada, pois a rapidez dos pneus se adianta.

Há essa certeza de que o troço de quatro a cinco horas, Saurimo/ Dundo, apesar de tudo, será percorrido em duas horas e meia, talvez três, no máximo. Pôr-se nessa jornada todos os endiabrados dias, à procura de melhores condições de uma vida que tarda, torna-se numa rotina cansativa e perigosa, simultaneamente. A verdade é que as estradas do País, na parte Leste, têm sido o cartaz para se compreender o porquê de uma lambula custar 100 a 150 kz. As zungueiras acostumaram-nos com uma dissertação, de tal azar que nos já anda quase tudo explícito. A priori, certa vez uma tia, no Dundo, afirmou que não se assustava com o esquecimento dado ao Leste de Angola faz muitos anos.

Acendi os olhos e lancei um sarcástico sorriso, longe da compreensão dela. Quando erguido se faz o meu rosto, estamos no Kamisombo, ainda na Lunda-Norte. O meu colega de lado descreve-nos uma paragem curta. Volta ao seu assento minutos depois, já com um litro de sangria nas mãos. O vinho sempre foi bebida de requinte, não é à toa que chegou a fazer companhia à Noite de Páscoa, na última ceia de Cristo com o seu discipulado; tampouco nos devemos esquecer do caso de um político que tinha um avião somente para transporte do vinho, de França ao seu País.

«Vamos, manos!» Orienta-nos o Dono da Viatura. Obedecemos-lhe. O pessoal dá sequência à conversa. Ainda não entrei no jogo. É que, nessas circunstâncias, de modo individual estamos a fazer sempre algo. O companheiro de perto, a título de citação, emite cada vez mais goles da Tropicana adquirida. Fico eu, que estou mais perto dele, atingido. «Mas essa gente não sabe respeitar a privacidade dos outros? » Abro essa pergunta retórica.

E sobre, estou há horas grudado ao livro de Mwene Vunongue. Lanço umas gargalhadas pelo senso de humor com que o autor narra os antogoko dos seus tios e primos, numa crónica com rasgos ontológicos aproveitáveis. Rispidamente, o Vizinho diz-me: «desde aquela hora a ler até agora? Pelo visto, gostas muito de ler!» Nem compreendo se está mais para uma questão ou afirmação espantosa. Lanço um sorriso e ele confirma. Ao querer saber se ele tem também tal prática, alega-me isso:

«Tipo mentira, né? Sou licenciado, mas nunca consegui terminar um livro. A primeira vez que tentei ler algo, foi o livro “Casamento Blindado”, mas nunca terminei. » Pauso um pouco sobre gotas de água. Penso inúmeras possibilidades, via cálculos, entretanto, os resultados não são animadores. Nesse instante, o “meu livro” está já encostado.

Há uma teoria em construção sobre a definição dada à inocência. Não é possível ser uma caixa vazia ao todo, a ponto de não saber, ao menos, pôr um ponto no I, ou um traço no T. A minha mente não aceita o depósito dessa verdade tão crua e nua. Esse cepticismo de que agora não possuo justificações saudáveis, é a prova de que tenho de continuar esperançoso.

Dou-lhe, a seguir, um livro de Fridolim Kamolakamwe, o mais recente. «Lê apenas o prefácio, mano! Tem 4 páginas. Se não gostar, depois me dá de volta.» Negoume o pedido. Mais frustração para mim. Ele conta-me que vai a Benguela para uma cerimónia de graduação. Eu, todavia, vou aqui perto, que quer dizer Saurimo. Nesse ínterim, deixo a mochila mais para lá. Olho para ele e digo-lhe: «os gostos são assuntos de teses longas. Até o Anjo Gabriel, criação divina, teve escolhas singulares, pelo que não posso tomar por desejo que o mano também goste de livros. Mas, desculpa-me o paradoxo, o assunto dos livros é um daqueles colóquios discutíveis em qualquer parte do Mundo.»

Nas viagens em que me é possível, desde que com duração de duas horas adiante, carrego sempre algum papel para deixar meus olhos mais abertos e minha mente aguçada. Aqui, não se fugiu da regra. Tenho menos pressa de chegar, pois agora estou mergulhado na conversa sobre a compreensão do meu Vizinho. À medida que ele fala, aproveito o ensejo para fotografar alguns rabiscos úteis. A licenciatura, em algumas partes de Angola usada como um desvio ao adjectivo “burrinho”, é sinónimo de intelectualidade disfarçada. O jovem de lado, funcionário público no Dundo, é-me alguma prova para sustentar a minha tese.

Conheço um senhor rico singular de substantivo Lu. O único que sabe a importância de livros, na condição de endinheirado, mesmo um famoso muito bonito e estratégico. Conhece vários livros sobre Estatística Bancária. Poderia ser de consulta ao meu Vizinho de viagem.

«Motorista, liga só o rádio ao meu telefone. Vou pôr um mambo bem bom.» Pede. A Força Suprema visita- nos repentinamente. Sou inquirido se a conheço. Respondo positivamente. A música em acção é “Quando o Kumbu Cair». Sinto- me chamado, mais uma vez, à esperança, uma virtude de graça, embora custe muito da nossa coragem. Tropeço diante dalguns versos da música. Ele ri-se, enquanto me advoga que as músicas também têm fortes ensinamentos e que posso, desse modo, aprender muito mais fora dos livros. Volto-me para si. Enfio meus olhos nos seus. Presumo uns 28 anos de idade. Rosto a bazar para o cansaço adiantado, tão-jovem, como diz uma amiga.

No fim de contas, deixo-me estar num à vontade assustador, como se fosse meu o carro que nos leva. Para deixar a limpo o facto de nenhum de nós ser tão cego assim, abro a minha mala de pensamentos, busco a última carta através dum suspiro mole e, no troço de terra à batida, digo-lhe: «a música também é parte da Literatura». Apenas me dá seu sorriso e tomo por encerrado o espontâneo diálogo, visto que já se disse o essencial, até aqui. Silêncio para todos.

Por: Salvador de Jesus Ximbulikha