Ex-líder de grupo de marginais no Sambizanga ordenado padre sob olhar de Mamã Muxima

Ex-líder de grupo de marginais no Sambizanga ordenado padre sob olhar de Mamã Muxima

O distrito urbano do Sambizanga, em Luanda, é conhecido a nível nacional pelo elevado índice de criminalidade, apesar de se registar uma tendência de redução destas práticas, por ser a base do mais conhecido grupo de Kuduro do país, antes conhecido como os Demónios do Sambizanga, hoje os Lambas. Entre as várias histórias de superação, passa a figurar a de Bebeta das Mbayas, um notável marginal que fundou o grupo a Turma do Privo, que se converteu e foi ordenado, recentemente, padre

Bebeta das Mbayas, cujo nome de registo é Nelson Borges, é o 7° de nove irmãos órfãos de pai, nascidos no interior do distrito urbano do Sambizanga, concretamente no bairro da Lixeira. As dificuldades da vida, agravadas pela pobreza extrema e a ausência do progenitor, falecido quando tinha apenas oito anos de idade, fizeram com que aos 12 anos de idade enveredasse para o mundo do crime. Um percurso que o levou a pertencer a vários grupos de criminosos, constituídos por crianças e adolescentes, com realce para os “Mini Filipamos Squad”, “Mini Pobre Achado”, “Wala Squad”, os “Praia Squad” e os “9 Tropas”.

Foi neste contexto que Nelson Borges, nascido a 06 de Dezembro de 1991, adoptou o alcunha de Bebeta das Mbayas. Com esta nova família, Nelson Borges passou alternar a viver na rua, por encontrar resistência da parte da sua progenitora, em aceitar a sua opção de vida. Para Quintina Borges Mendonça, a escolha errada do filho era um duro golpe e não dignificava o sacrifício que fazia para que tivesse um futuro melhor. Segundo contou à nossa reportagem, ser membro de um grupo ou associar-se a um no “Sambila” era o desejo de todo os meninos ou jovens que quisessem ser respeitados na rua. Dava honra, respeito e até mesmo protecção para os membros da sua família, dado ao alto índice de criminalidade que se registava na época.

“O Sambizanga era a zona de Luanda com o índice de criminalidade mais elevado. A pessoa entra para o crime por causa da fome ou mesmo só por ilusão, más companhias ou por querer ser famoso. Lá o altamente perigoso é respeitado e muito famoso nas ruas. Ninguém se atreve a tocar a si ou a sua família. Ser de grupo impunha o respeito pelo medo”, disse. Com o passar do tempo, Bebeta das Mbayas percebeu que entre os seus companheiros não havia honestidade, sobretudo por parte dos líderes dos grupos no momento da distribuição dos bens roubados. Decidiu, assim, em companhia de alguns amigos, criar o seu próprio grupo a que atribuiu o nome de “Turma do Privo” e passou a realizar acções delituosas, com destaque para roubos e assaltos à mão-armada no bairro da Lixeira.

“Um grupo que rapidamente passou a ser conhecido por causa dos membros que já tinham uma longa ficha criminal”, recorda. À semelhança do que acontecia com outros grupos espelhados por Luanda, a Turma do Privo também passou a envolver-se nos conflitos, envolvendo agressões físicas, entre os grupos. A proximidade da sua zona de conforto com o extinto mercado Roque Santeiro, facilitava a selecção de “presas” ou vítimas que na sua maioria eram pessoas que lá se deslocavam para fazer compras e os alunos do Complexo Escolar Dom Bosco. Recorda que dominavam, na perfeição, o mapa daquele que já foi o maior mercado informal do país e, quiçá, disputava esse título com outros a nível do continente.

A possibilidade de serem pegos neste local era ínfima, pois, entravam e saíam por todos os lados. Haviam dias em que entravam pela manhã e saíam ao anoitecer. “Comecei a roubar pelas ruas, nas escolas onde estudava e evolui para assaltos à mão armada quer em residências ou pelas ruas de Luanda. Envolvi-me em fortes lutas de grupo, empunhando diversos tipos de armas, quer branca ou de fogo, incluindo objectos contundentes, principalmente garrafas, que chamávamos de munição. Nós éramos verdadeiros guerrilheiros na luta pelo respeito e domínio de ruas” revelou.

Da CCL à uma “cadeia a céu aberto”

Foi várias vezes detido e preso na Cadeia Central de Luanda (CCL) onde, por milagre conseguiu sair. A reincidência no cometimento dos crimes o levou Nelson Borges a constar na “lista” dos marginais altamente perigosos procurados, na época, pela Direcção Nacional de Investigação Criminal (DNIC), cujos integrantes, dada a periculosidade que ofereciam à sociedade, deviam ser detidos ou aniquilados. “Fui considerado perigoso pela Polícia e me quiseram prender várias vezes. Nalgumas conseguiram e noutras escapei. Fugi deles [peritos da ex-DNIC] no meio de um tiroteio que por um milagre não me valeu a vida

Queriam matar-me”, explicou aos choros. Por sorte, segundo conta, acabou por ser detido. Muitos dos seus amigos acabaram por perder a vida em confrontos com a Polícia, alguns ainda em cadeiras de roda e outros presos nos vários estabelecimentos penitenciários existentes no país. “Perdi muitos amigos, mas foi a Polícia que os matou. Conheço pessoas que hoje são cadeirantes por causa de ferimento de bala”, frisou. Sublinhou que existem outros ex-integrantes de grupos de marginais que perderam um dos membros, dos olhos ou têm feias cicatrizes pelo corpo em consequência dos golpes de catana desferidos nas disputas entre os grupos. Face a esta realidade, Quintina Borges Mendoça, temendo pela vida do filho, que constava da lista dos procurados pela DNIC, começou a buscar soluções para “salvá-lo”.

Entre as várias opções, considerou ser mais prudente entregá-lo às mãos de um padre que se encontrava destacado numa das paróquias de Luanda, porém, Nelson Borges já era considerado “persona non grata”. Em função disso, a saída de Luanda foi a solução para escapar da morte eminente. Foi assim que a mãe, entregou o filho ao padre Manuel Calengue Tchissingui que, por sua vez, entregou-lhe ao seu colega padre Américo da Costa Gomes, pároco da Nossa Senhora da Muxima, no Toco, província eclesiástica do Lubango.

A cidade era para o adolescente de 15 anos de idade, como um chamariz para a prática de crimes, logo, um lugar inapropriado para Nelson. Como plano B, Américo Gomes teve de transferir o pequeno criminoso para o município de Chipindo, a 450 quilómetros da cidade do Lubango, para ficar aos cuidados do padre Angelino Tchindombe Kamati. Sem cobertura de qualquer rede telefónica, sem qualquer sinal de rádio ou televisão, fruto da guerra, Chipindo era considerado pelos professores ali colocados na época uma autêntica “cadeia a céu aberto”, mas foi lá onde Nelson Borges encontrou a salvação do corpo e da alma. “Lá me reabilitei e fiz de mim um novo homem com a graça de Deus”, adiantou

A conversão e a entrada ao seminário

No Chipindo, Nelson Borges passou a viver na casa paroquial. Uma casa de pau-a-pique bem longe dos hábitos de quem vinha de uma capital, como era o seu caso. Residência que, sob a orientação do padre Angelino Tchindombe Camati, era visitada frequentemente por seminaristas em períodos de férias. Depois de alguns anos de convivência, Nelson Borges começou por frequentar a igreja e a participar de alguns grupos de leigos da paróquia, mas sem qualquer interesse para o sacerdócio. No entanto, passou a ter a mínima noção do que era o trabalho dos padres. “Eu gostava muito de ver os seminaristas. Vestiam-se bem, andavam com estilo, falavam bem o português, comiam à mesa com os padres e eram muito estimados pelas pessoas”, frisou. Foi assim que decidiu ser seminarista para também gozar de todos aqueles privilégios. Ingressou no Seminário e, apesar de muitas dificuldades, comecei a gostar de lá estar, mas sem interesse de ser padre. “Para mim era ainda uma ideia muito vaga, tinha pouco interesse por isso”, contou.

De marginal à padre

Já no seminário menor de propedêutico, na comuna do Jau, município da Chibia, província da Huíla, a vocação sacerdotal começou a falar mais alto e o jovem aplicava-se mais para repor os cinco anos que perdera na vida do crime. Entretanto, Nelson Borges diz que só descobriu que nasceu para ser padre quando se encontrava a frequentar o curso de filosofia no Seminário Maior Padre Leonardo Sikufinde, na Mapunda, arredores da cidade do Lubango. “Por causa da vida que levava atrasei cinco anos na escola. Fiquei reprovado por quatro vezes e fiquei um ano sem estudar.

No ano em que fiquei sem estudar comecei a sentir falta da escola e quis voltar a estudar. No ano seguinte retomei os estudos e passei a valorizá-lo mais”, frisou. Depois de terminada a sua formação em Teologia pelo Seminário Maior Padre Leonardo Sikufinde, o nosso interlocutor foi ordenado diácono, a 21 de Janeiro do ano em curso. E, assim “morria” o Bebeta das Mbayas, fundador da Turma do Privo, e “nascia” o padre Nelson Borges, do clero diocesano. No dia 17 de Julho de 2021, aos 29 anos de idade foi ordenado padre pelo arcebispo metropolita do Lubango, Dom Gabriel Mbilingui.

“No meu terceiro ano de Teologia, no venerável Iraque, o nosso Jau, senti bem dentro de mim que quis ser padre e estava pronto para tal. Dali passei a ter como objectivo ser padre. Hoje, pela graça de Deus, o sou o meu modelo de sacerdote diocesano”, frisou. Contou que essa escolha se deve ao facto de os padres envolvidos na sua superação, acima citados, serem diocesanos. “Já pensei em ser religioso ou então pertencer à Arquidiocese de Luanda, mas nunca levei avante este pensamento. Gosto de ser Diocesano e de pertencer à Arquidiocese do Lubango, desde já, aproveito para saudar Sua Excelência Reverendíssima Dom Gabriel Mbilingi”, frisou.