Acerca sanitária a Luanda é uma das medidas adoptadas pelo Titular do Poder Executivo no quadro do combate e mitigação da propagação do vírus SARS-Cov-2, factor etiológico da Covid-19. Dentro do direito de cidadania e de participação na vida pública do país que a Constituição da República de Angola me confere e como profissional de saúde permito-me questionar a manutenção prolongada da cerca sanitária a Luanda, pois entendo que esta medida, nesta altura é uma “quimera”. Considero, por isso, que a manutenção prolongada desta cerca sanitária é digna de análise para melhor compreensão e o presente texto espelha a minha análise e compreensão sobre este assunto.
Março de 2020 foi o mês em que Angola notificou pela primeira vez os primeiros dois casos de COVID-19, importados de Portugal. Passou-se aproximadamente um ano e quatro meses desde o início desta pandemia no país, tempo bastante para permitir uma análise fria e sustentada da sua evolução em Angola. Quando foram diagnosticados os primeiros casos foram de imediato tomadas medidas drásticas como o encerramento das fronteiras aéreas e terrestres e sequencialmente, como medida adicional, decretou-se poucos dias depois o “Estado de Emergência”.
O primeiro decreto do “Estado de Emergência”, efectivado às 0h:00 do dia 27 de Março de 2020, teve como principal finalidade o estabelecimento das cercas sanitárias provinciais, garantir o confinamento geral da população e impedir a propagação do SARS-CoV-2 a nível das comunidades. Esta medida foi tomada numa altura em que Angola havia notificado apenas 4 casos positivos importados em aproximadamente 250 testes realizados por RT-PCR, num universo de cerca de 1800 pessoas em quarentena (cidadãos provenientes do exterior do país), quer institucional e quer domiciliar, representando então uma cobertura de testagem de apenas 14%. As medidas drásticas então adoptadas, apesar dos números reduzidos justificavam-se, pois até a Organização Mundial de Saúde (OMS) prognosticava para os países africanos uma evolução catastrófica da pandemia que poderia rapidamente levar ao colapso os já débeis sistemas de saúde.
Jogar na antecipação adoptando medidas drásticas era, portanto, uma atitude avisada por parte destes países. Até ao mês de Junho, com excepção das províncias de Benguela e Cuanza-Norte, com 1 e 3 casos, respectivamente, Luanda era o epicentro da pandemia da COVID-19 em Angola, com um aumento exponencial do número de casos, tendo sido notificados 173 casos, representando 67% do total de 259 casos identificados desde o início da pandemia no país. Tal situação justificou a manutenção da cerca sanitária apenas para Luanda, de acordo com “Decreto Executivo Conjunto” nº 178/20 de 10 de Junho. Era mais do que evidente, na altura, que havia uma subnotificação de casos nas outras províncias por via da baixa cobertura de testagem por RT-PCR e não propriamente pela inexistência de casos devido a eficácia da cerca sanitária de Luanda.
Este facto ficou bastante notório quando se introduziram no país os testes serológicos rápidos para rastreio que revelaram muitos casos IgG positivos, significando que muitos indivíduos haviam tido contacto com o vírus, tendo provavelmente desenvolvido formas assintomáticas ou leves de Covid-19. Isto veio a confirmar-se no período de Outubro a Novembro de 2020, quando se instalaram laboratórios de testagem por RT-PCR nas diferentes regiões do país, o que resultou num aumento da cobertura de testagem e consequentemente no surgimento de maior número de novos casos nos diversos pontos do país. Esta era a prova de que o SARS-CoV-2 já circulava a nível das comunidades nas diferentes províncias, ou seja, nessa altura já havia motivo mais do que suficiente para se declarar a existência de “circulação comunitária” em todo território nacional, coisa que as autoridades sanitárias demoraram e ainda hoje relutam em reconhecer.
Mesmo em relação a Luanda o reconhecimento de que já estávamos perante circulação comunitária do vírus foi objecto de inexplicáveis hesitações que levaram ao estabelecimento de categorias epidemiológicas absurdas do tipo “caso com vínculo epidemiológico por estabelecer”. O problema destas hesitações é que elas concorrem para a adopção de medidas nem sempre consentâneas com a situação epidemiológica concreta. As cercas sanitárias pelo transtorno social e económico que acarretam devem ser instituídas mediante leitura rigorosa do quadro epidemiológico. Actualmente Angola conta com mais de 41 mil casos notificados, dos quais cerca de 5 mil estão activos, sendo 98% assintomáticos, e um cumulativo de cerca de 970 óbitos, distribuídos pelas 18 províncias.
Logo, remete-se a seguinte questão: com os actuais dados epidemiológicos, existem ainda dúvidas sobre a existência de circulação comunitária em todo território nacional? Em contexto de “circulação comunitária” do SARS-CoV-2 em todo território, já não faz sentido a manutenção da cerca sanitária numa das províncias, pois, esta medida visa apenas impedir a propagação do vírus entre uma circunscrição territorial com “circulação comunitária” e outra que ainda não esteja nesta condição, que claramente já não é o caso de Angola. Por outro lado, os dados das últimas duas semanas indicam que o epicentro da pandemia deslocou-se de Luanda para o leste, onde ultimamente se registam mais casos do que em Luanda.
Também o número de óbitos tem sido maior em outras províncias do que em Luanda. A Huíla é cumulativamente a província que tem registado mais óbitos depois de Luanda. Este panorama torna ridícula a manutenção da cerca sanitária e mostra claramente que não foram correctamente definidos os objectivos da instituição da cerca sanitária a Luanda. Pela forma como se propaga o SARSCOV-2 a cerca sanitária a Luanda nunca poderia visar o impedimento absoluto da propagação do vírus ao restante território, mas simplesmente servir de tampão para impedir uma propagação mais rápida que resultaria num desastre sanitário difícil de controlar em algumas províncias, sobretudo aquelas mais densamente povoadas e economicamente relevantes. Este objectivo há muito foi alcançado e, por isso há muito a cerca sanitária deveria ser levantada.
Nem mesmo a ocorrência de novas variantes, algumas por sinal mais virulentas tem força bastante para justificar a manutenção da cerca sanitária a Luanda. Com “circulação comunitária” em todo território e mais agora com a deslocação do epicentro para o leste, o ideal seria apenas manter-se as medidas de biossegurança individuais e mudar as estratégias de mitigação do curso da pandemia, no sentido de reduzir o grau de transmissibilidade entre as pessoas a nível das comunidades e garantir a gestão adequada dos casos leves na rede de cuidados primários de saúde (centros médicos e hospitais municipais) e dos casos graves na rede dos hospitais de referência provinciais e nacionais.
O investimento maior neste momento deve concentrar-se no programa de vacinação alargando a cobertura no sentido de alcançar a imunidade colectiva que resultará num significativo afrouxamento da propagação do vírus. Há já demasiados dados que apontam a vacinação como a arma mais “letal” no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Por isso vale a pena investir nesta frente. A cerca sanitária a Luanda tornou-se um instrumento ineficiente. Numa razão de risco/ benefício sobre a manutenção da cerca sanitária de Luanda, é evidente que existe mais risco mantê-la, pois, esta medida está associada ao estabelecimento de grandes limitações na saúde e bem-estar das pessoas, do que propriamente benefícios de uma suposta protecção contra a contaminação pelo SARS-CoV-2. A cerca sanitária a Luanda acarreta problemas de índole económica de grande monta que concorrem para o aumento do desemprego e a falência de empresas, tornando, por conseguinte mais penosa a vida das famílias e o aumento da pobreza nas comunidades.
A cerca sanitária a Luanda no actual contexto em nada contribui para melhorar a situação da COVID-19 e muito menos os indicadores e problemas de saúde pública mais preocupantes que caracterizam o nosso país muito antes da pandemia, tais como: a alta taxa de mortalidade materno-infantil por causas de fácil prevenção (ex: de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística, 2017, mais de 50% das mulheres têm os partos fora de unidades hospitalares, uma em cada 15 criança morre antes dos 5 anos de idade e 35% destas mortes ocorrem no primeiro mês de vida), alta taxa de malnutrição crónica em crianças (mais de 40% das crianças sofrem de malnutrição crónica), a baixa cobertura vacinal em crianças (ainda existem províncias como Bié, Moxico e Cuando Cubango, com menos de 15% de crianças vacinadas), baixa cobertura dos cuidados essenciais de saúde a nível das comunidades, o fraco atendimento hospitalar das vítimas da sinistralidade rodoviária e outras formas violentas.
Se antes foi útil, actualmente já é altura de levanta-la, e garantir a livre circulação de pessoas e bens e centrar o foco nos problemas de saúde de modo geral de acordo as devidas prioridades. Já não há mais tempo e nem recursos para perdermos com medidas estéreis que nada acrescentam ao combate a Covid-19. A manutenção da cerca sanitária a Luanda é uma “quimera” cuja lógica é difícil descodificá-la, mas para a qual estão certamente associados esquemas ínvios relacionados ao descaminho de dinheiros públicos. Só neste quadro se pode compreender a ridícula manutenção prolongada da cerca sanitária a Luanda.
POR: Rosalon Pedro