Boaventura Cardoso: “Já não é possível o regresso à Festa da Ilha com a dimensão com que era realizada”

Boaventura Cardoso: “Já não é possível o regresso à Festa da Ilha com a dimensão com que era realizada”

A Festa da Ilha, que desde os primórdios teve um grande impacto ao nível nacional e internacional, fez parte dos roteiros de vários turistas e não só, preenchendo os seus planos de férias, no décimo primeiro mês do ano. Com o movimento migratório dos ilhéus, resultante do conflito armado pós-eleições gerais de 1992, e não só, a Ilha passou a constituir o que alguns investigadores caracterizam como sendo a “diáspora Axiluanda”, iniciando, assim, em termos culturais, o processo de desterritorialização da Ilha. Nesta entrevista, o escritor e deputado à Assembleia Nacional, Boaventura Cardoso, antigo ministro da Cultura, ajudar-nos-á a compreender a situação

Qual o seu ponto de vista sobre a Festa da Ilha actualmente e que importância atribui a mesma a Luanda, em particular, e ao país em geral?

A Festa da Ilha faz parte da cultura luandense, desde os primórdios. Para o país, ela inscreve-se no conjunto das festas populares e tradicionais.

Como era organizada anteriormente e que procedimentos observava?

Antigamente, a Festa da Ilha era realizada na segunda semana do mês de Novembro e mobilizava todos os luandenses a partir da Sexta-feira. Para além da missa e da procissão da Nossa Senhora da Ilha do Cabo, a animação espalhava-se por toda a extensão da Ilha. De qualquer modo, o ponto de maior concentração situava-se na Floresta.

Há quanto tempo não assiste ou participa na tradicional Festa da Ilha? Porquê?

Não participo da Festa da Ilha desde que deixei de ser Secretário de Estado da Cultura, em 1990. Quando, em 2001, deixei a Diplomacia para voltar a dirigir o Sector da Cultura, desta feita como ministro, já não se realizava a Festa da Ilha. Acho que uma das causas dessa situação estará na grande migração dos habitantes da Ilha que se seguiu ao conflito armado que ocorreu na sequência das eleições gerais de 1992.

A Comunidade Ilheia e não só recorda com alguma tristeza que há vários anos que não se cumprem os rituais à Kianda, a Deusa das águas e protectora dos pescadores, e que esta manifestação está, aos poucos, a perder o seu significado. Que comentários faz e até que ponto esta situação se pode repercurtir na vida dos axiluandas e não só, que vêm a sua tradição a desaparecer?

Compreendo o sentimento de tristeza dos ilhéus. Como disse, a Festa da Ilha, como manifestação mundana, começou a desaparecer na década de 1990. A partir de então, muitos ilhéus começaram a alienar as suas casas e parcelas de terrenos a comerciantes de vários ramos e imobiliárias que, nesses espaços, edificaram prédios para vários fins. Esse movimento migratório dos ilhéus passou a constituir o que alguns investigadores caracterizam como sendo a “diáspora Axiluanda”. Assim, começou, em termos culturais, o processo de desterritorialização da Ilha.

Na sua modesta opinião, quando é que se começou a observar, de facto, que esta tradição estava a declinar e qual foi a sua reacção na qualidade de escriba, Homem das Letras e da Cultura?

Creio que, a partir de 1992, após o conflito armado que se seguiu às eleições gerais, como já disse. Quando, em 2001, voltei da diplomacia já era visível a descaracterização física da Ilha com a construção de muitos edifícios em betão, a chegada de novos habitantes com práticas predadoras do meio ambiente (os coqueiros e as figueiras estão a desaparecer) e de uma maior circulação de viaturas. Acresce a isso a acentuada vandalização da Floresta, que, na época colonial, era sazonalmente destinada a campismo escolar.

Guarda algumas memórias da Floresta?

Vale recordar, a propósito, que, em 1974, a Floresta foi o local de concentração de centenas de colonos que fugiam das suas zonas mercê dos conflitos armados dos movimentos de libertação nacional. Novamente, em 1975, antes da Independência, a Floresta voltaria a ser o local de concentração, desta feita de compatriotas deslocados, com todas as consequências daí advenientes, nomeadamente, o corte de casuarinas para lenha. Por tudo isso, a Ilha perdeu o encanto pitoresco que tinha no passado.

Que passos devem ser dados no sentido de resgatar uma instituição milenar herdada dos nossos antepassados, divulgada e preservada durante anos com veneração?

Acho que hoje já não é possível o regresso à Festa da Ilha com a dimensão com que era realizada, particularmente na década de 1980, com uma intromissão descabida do Estado na fase preparatória da mesma. Mas deve-se ter em conta que o ritual da Festa, o chamado ‘Kakulu’, se estende para lá dos limites geográficos da Ilha, mobilizando os pescadores da orla marítima, nomeadamente da Corimba, da Samba, do Mussulo e da Barra do Kwanza. Nessa perspectiva, o ritual poderá ocorrer independentemente da presença de grandes multidões e sem a intromissão do Estado, embora seja recomendável e necessário o apoio circunstancial das competentes administrações municipais.

A Kianda, Sereia em português, é retratada de várias formas e em tudo quanto à Cultura diz respeito: na música, na pintura, na literatura, nas artes cénicas, no cinema, e muito mais. A quem se devem atribuir as falhas na passagem do testemunho às mais novas gerações?

A forma como a Kianda vem sendo representada graficamente, de acordo com a iconografia clássica-uma mulher de cabelos longos na parte superior e, na inferior, um peixe com barbatana caudal-, nada tem a ver com a nossa cultura. A Kianda é um génio que se crê existir no mar, nas margens dos rios, nos lagos e lagoas e em locais húmidos. De um modo geral, os génios podem habitar em montanhas, colinas, florestas, árvores, nos campos agrícolas, em fenómenos meteorológicos como a chuva, a trovoada ou o eclipse; os génios podem encarnar numa pessoa e originar deformações físicas. Nas zonas como Luanda, a Kianda é comumente identificada como sendo sinónimo de sereia, o que patenteia como a influência cultural ocidental terá transformado (sincreticamente) uma figura tradicional angolana (Kianda) num ser mitológico da tradição grega e clássica.

Entre nós, esta nova e híbrida figura passou a ser abundantemente utilizada no marketing publicitário, o que não favorece a conservação da tradição originária da Kianda. Vale dizer que essa representação exógena da Kianda foi assumida também por alguns grupos do Carnaval de Luanda. Acho que as instituições culturais e os órgãos de comunicação social, com o apoio de antropólogos e sociólogos, deveriam desencadear um processo de desconstrução dessa narrativa, promovendo e divulgando conhecimentos endógenos sobre a nossa cultura popular tradicional.

Quando se ouve dizer, actualmente, em Festa da Ilha ou Festa da Kianda, que mensagem lhe ocorre passar para quem nunca vivenciou esta grande manifestação cultural?

Primeiro, que, apesar de vivermos num mundo dominado pela ciência e pela técnica, e sem pormos em causa a crença num Deus Supremo, o africano, no seu quotidiano, tem a necessidade de um relacionamento mais directo e prático com outras divindades com quem estabelece um contacto mais próximo. Tais divindades não são mais do que intermediários no relacionamento com Deus, sendo, pois, através delas que se dirige ao Ser Supremo.

Por isso, elas não são mais do que divindades secundárias, que podem ser génios, espíritos ou até mesmo antepassados. Assim se deve interpretar a crença arreigada que os pescadores têm de que a Kianda (kituta*ou Kiximbi*) é o génio do mar a quem devem veneração para aplacar o mar proceloso e garantir boas pescarias. Segundo, que a Festa da Ilha pode, se houver incentivos, promover o turismo.ocorrência de fenómenos naturais (calemas) que resultaram no desaparecimento de partes da Ilha e a consequente deslocação de famílias de pescadores para os musseques Sambizanga e Rangel, para a Corimba, Samba e Mussulo.

Que passos devem ser dados para resgatar o verdadeiro sentido da Festa da Ilha que ultrapassava fronteiras insulares, obedecendo os seus princípios e preservar esta instituição milenar?

Acho que os departamentos ministeriais encarregues da Cultura, do Turismo, do Ambiente, do Comércio e das Pescas, em estreita articulação com as competentes administrações municipais e da Igreja Católica, deveriam incluir nas suas agendas acções com vista à revitalização da Festa da Ilha. A este propósito, gostaria de recordar que o Primeiro Simpósio sobre Cultura Nacional, realizado em 1984, já recomendava que se criassem “condições para que em todo território nacional se desencadeie um amplo movimento de resgate, valorização e posse das tradições e arte populares” que “favoreçam uma melhor e maior interiorização do significado da nossa identidade cultural”.

A morte de algumas entidades ligadas ao Conselho de Anciãos assim como a desarticulação da Autoridade Tradicional da Ilha terá criado algum efeito negativo na preservação da difusão da Cultura Axiluanda?

Sem dúvidas que esse também foi um factor que teve uma influência negativa na cultura Axiluanda.

Que memórias tem desta que é uma das grandes festividades de Luanda?

A par do Carnaval de Luanda, a Festa da Ilha mobilizava toda a cidade. Muitas famílias iam para a Ilha à Sexta-feira e só regressavam ao Domingo. Havia comes e bebes em toda a Ilha, muitas farras ao ar livre. O Marítimo da Ilha acolhia os melhores conjuntos musicais como os Negoleiros do Ritmo, os Gingas (com Duia), os Kiezos, os Jovens do Prenda, e tantos outros. Um outro ponto de atracção era missa e a procissão de Nossa Senhora da Ilha do Cabo.

Se alguém lhe conferisse a responsabilidade de realizar a Festa da Ilha no verdadeiro sentido da palavra, que aspectos delineava como prioritários?

Realizaria primeiro encontros de auscultação com os pescadores não só da Ilha de Luanda, como do Mussulo, da Corimba, da Samba e da Barra do Kwanza, talvez também de Kalumbo e da Barra do Dande, para saber deles o que desejariam que se fizesse para preservar a tradição. Nessa “démarche”, far-me-ia acompanhar de antropólogos, sociólogos, historiadores, urbanistas e ambientalistas. Finalmente, gostaria de sublinhar que os principais grupos carnavalescos de Luanda foram, na sua origem, criados por pescadores. É o caso do União Mundo da Ilha, do União 54, do União Kyela e do já desaparecido União N’zumba. No que ao desporto diz respeito, recordo que o Marítimo da Ilha, para além das farras que organizava, constituía uma equipa de futebol.