O Pecado Linguístico: uma reflexão sobre as diferentes normas

O Pecado Linguístico: uma reflexão sobre as diferentes normas

O homem, desde que percebeu que a convivência em sociedade é um elemento imprescindível para a sua sobrevivência, tem criado normas que lhe servem de regulador nas relações interpessoais. Os países contemporâneos, e inclui-se aqui Angola, possuem normas ou leis que ditam a punição dos indivíduos segundo as suas infracções, seus delitos, e isso faz com que não entremos, como propõe Hobbes (1651), no estado de natureza, onde “o homem é lobo do próprio homem”. Porém, é importante deixar claro que, além da ideia de norma apresentada no parágrafo acima, há outras normas igualmente importantes, embora sejam diferentes uma da outra, que regem outros campos da sociedade, nomeadamente da música, dança, culinária, língua, etc.

Então, é natural, por serem áreas diferentes, que as normas aplicadas à música não sejam as que são aplicadas à culinária e é, de igual modo, perceptível que as normas aplicadas ao Direito não sejam as que são aplicadas à fala das pessoas, e vice-versa. Muitos académicos (e não só), no entanto, quando se referem ao modo como uma determinada comunidade linguística se expressa, se esquecem de que a língua possui regras próprias, que diferem das que são utilizadas, por exemplo, no Direito. Por cá, tornou-se comum as pessoas tratarem das variações inerentes às línguas como se do pecado capital se tratasse e esquecem-se de que todas as variedades possuem regras, normas, apesar de serem diferentes das que estão prescritas nas gramáticas normativas. No entender do lexicógrafo e filólogo Ferreira (2004), norma é tudo aquilo que se tem como princípio, regra.

Sobre esta última palavra, regra, os autores consultados afirmaram, unanimemente, que norma também significa regra, e, na visão do autor acima citado, regra é a “fórmula que indica o modo correcto de falar[…]”. Camacho e Tavares (s/d) demonstraram a mesma ideia acima mencionada. Para estes dois autores, norma significa “regra, princípio, preceito e Lei” (p. 425). De um modo geral, os autores supracitados não apresentaram a tal “fórmula”, ideia defendida por Ferreira, que, no entender deles, identifica o modo “correcto” de se falar uma determinada língua e, como se não bastasse, analisaram a palavra norma apenas na perspectiva que apresentámos no primeiro parágrafo, mesmo no espaço reservado à língua, ou seja, conceituaram norma como um princípio que, se quebrado, é punível por Lei.

Além dos aspectos que acabámos de elencar a respeito das ideias dos autores acima, também ficámos sem perceber, por falta de clareza da parte deles, o que pretendiam dizer, de facto, com a expressão “falar bem uma determinada língua”, porém, se tivéssemos que arriscar, diríamos que, para eles, “falar bem uma língua” pressupõe seguir todas as regras da gramática normativa, o que não é verdade, como procuraremos explicar mais abaixo. A ideia que melhor se adequa ao que pretendemos aqui demonstrar pode ser lida no Dicionário de Língua Portuguesa Houaiss, de AAVV (2007). Vê-se nele, e com bastante clareza, que a palavra norma não diz apenas respeito ao “conjunto dos preceitos estabelecidos na selecção do que deve ou não ser usado[…]”, como apresentaram os autores citados anteriormente, mas, também, “a tudo o que é de uso corrente numa língua”. Dito de outro modo, a palavra norma, que é, grosso modo, o objecto da norma reflexão, pode ser compreendida de duas formas distintas: primeiro, como o conjunto de regras que devem, obrigatoriamente, ser seguidas, independentemente do espaço geográfico, do nível académico de quem fala, etc., e, segundo, como o conjunto de regras que já fazem parte da gramática internalizada dos falantes de uma determinada comunidade, tudo o que é funcional, o que é corrente e normal entre eles.

Com base nisso, percebe-se que todas as variedades têm normas ou regras, embora sejam diferentes da norma-padrão, tal como acontece com a música e a culinária, que também possuem regras diferentes, mas isso não quer dizer que as normas não estejam lá. Muitos autores tratam da norma linguística como se estivessem a falar de crimes, de regras imutáveis e esquecem-se de que cada área do saber obedece a leis próprias. Para muitos, só é português o que os gramáticos dizem que o é, como se estes fossem os deuses da língua, e desprezam os linguajares que diferem do padrão, como se fosse a única forma de se falar. Em Angola, apesar da pluralidade linguística que se verifica, a única norma aceitável é a que se usa em Portugal, como se esta fosse a única norma da língua portuguesa. Pensamos que o amigo leitor, se é que há alguém a acompanhar-nos, já deve ter imaginado que esse contrassenso contribui grandemente para o insucesso escolar, privação de direitos humanos (muitos sentem medo de falar em público com medo de serem estigmatizados), desvalorização cultural, além de outros problemas socioculturais, psicológicos e linguísticos.

A língua portuguesa que foi usada como instrumento de colonização em Angola não é a que os angolanos usam hodiernamente. Se ouvirmos atentamente os angolanos comunicarem-se no dia-adia, facilmente concluiremos que ela foi, com o passar do tempo, transformada nas suas múltiplas dimensões: sintática, morfológica, lexical, semântica. Hoje, ninguém fala, em todos os momentos, «amo-TE», «quero-O», «adoroVOS», «beija-A», como se exige na norma-padrão europeia. Para aquela norma, em frases afirmativas, o pronome deve sempre aparecer depois da flexão verbal, tal como se grafou acima, todavia, em Angola, obedece-se a uma norma/regra diferente das que se prescreveram nas gramáticas normativas.

Por cá, tendo em conta a norma que nos é intrínseca e funcional, o normal é dizer-se «TE amo», «LI quero», «VOS adoro», «LI beija», e é um fenómeno natural, pois as línguas variam quando são faladas por pessoas diferentes, e a norma-padrão “nunca é integralmente[…]dominada pelos falantes”, como escreveu Adriano (2015, p. 51). As línguas são como organismos vivos, ou seja, elas adaptam-se às mudanças socioculturais, geográficas e psicológicas pelas quais passam os que as falam. No nosso país, também ocorreu esse processo de adaptação, tal como no Brasil, em Moçambique, Cabo Verde, até mesmo em Portugal, uma vez que o português do século XVIII não é, naquelas terras, o mesmo que o do século XXI, e, portanto, ninguém tem o direito de nos dizer que falamos, em Angola, erradamente e muito menos que não seguimos normas.

POR: Famoroso José