Manuel Vaz de Borja Júnior: “O Bairro Operário viu nascer intelectuais, pessoas ligadas às artes culturais, foi o pólo de convergência do nacionalismo angolano”

Manuel Vaz de Borja Júnior: “O Bairro Operário viu nascer intelectuais, pessoas ligadas às artes culturais, foi o pólo de convergência do nacionalismo angolano”

Com enfoque em memórias, vivências e nostalgia, Manuel de Borja Júnior ”Novato” acaba de realizar o seu sonho, com o lançamento do livro intitulado “Contributos Para a História do Bairro Operário–Tributo às Suas Gentes e Famílias”, uma obra que segundo o autor, vem revisitar as emoções que vivemos espiritualmente, nesta cidade de Luanda e, em particular, no Bairro Operário, onde nasceu e cresceu. Em entrevista ao Jornal OPAÍS, o também desenhador Cartógrafo e Técnico de Topografia, fala dos desafios

Como surgiu a obra “Contributos Para a História do Bairro Operário–Tributo às Suas Gentes e Famílias e o que trás para o público leitor em geral e, em particular, para os estudantes de história?

A obra surgiu da necessidade de revisitar as emoções que vivemos espiritualmente, nesta cidade de Luanda e, em particular, no Bairro Operário, onde nasci e cresci, cujos terrenos pertenciam à família Burity, de cuja árvore genealógica faço parte, sentimo-nos na obrigação de transmitir modestamente o que sabemos e o que vivemos. Para o público leitor em geral e, em particular, para os estudantes de história, o livro trás alguma informação da vida social levada no período colonial.

O que o inspirou a escrever sobre o Bairro Operário e de que fontes se socorreu para enriquecer o livro?

As fontes, para o enriquecimento da obra: procedemos à uma série de pesquisas históricas, a jornais, revistas, obras literárias, aos acervos bibliográficos do Arquivo Nacional de Angola, Biblioteca Nacional de Angola, Biblioteca do Governo Provincial de Luanda, Instituto de Planeamento de Gestão Urbana, Instituto Cadastral de Angola e do Instituto Nacional de Estatística de Angola, serviram de base para o desenvolvimento dos temas: Alguns factos da ocupação das terras de Angola. A cidade de Luanda e os designados musseques.

Que apoios teve e quanto tempo levou a escrever a obra?

Tive apoios de alguns contemporâneos que residiram no Bairro Operário. Da recolha da informação, tratamento, enquadramento e conclusão da obra, mais de um ano.

Como está a mesma estruturada e qual é a Editora encarregue pela publicação?

Estruturamos o livro por capítulos. O primeiro trata da parte política, sobre a qual reportamos alguns factos da ocupação das terras de Angola. A actuação da PIDE/DGS-Polícia Internacional de Defesa do Estado/Direcção Geral de Segurança, instalada em Angola a partir de 1957. O papel da Associações nativas e outras correntes nacionalistas. Outros items, procedemos ao levantamento e reconstituição das famílias que residiram no Bairro Operário, por ordem nominativa e alfabética.As famílias, no plano material e no plano afectivo. Figuras emblemáticas e populares, processos e agentes de socialização, o paradigma de vida dos jovens. Quanto ao desporto – destacamos um educador social, um gentleman, um ilustre, o professor Demósthenes de Almeida Clington que foi timoneiro da modalidade de atletismo em Angola.

Por ele passaram atletas que brilharam em Angola e em pistas internacionais, como Rui Mingas, Barceló de Carvalho “Bonga”e outros atletas. Ainda no desporto,reportamos os espaços livres para a prática desportiva, o futebol popular. Em relação à cultura, o Bairro Operário era o pólo cultural da cidade de Luanda e nele residiram pessoas ligadas à literatura, às artes cénicas, à música angolana. O conjunto “N´Gola Ritmos”, do lendário Liceu Vieira Dias, teve a sua sede no Bairro Operário, o “Fogo Negro”, de Oliveira Fontes Pereira e José Matos Júnior “Lindo da Popa”. O conjunto “Os Negoleiros do Ritmo” de Dionísio Rocha”, o mestre Duia, guitarrista do conjunto “Os Gingas”, residiu no Bairro Operário. O artista Alberto António Teta Lando, também residiu no Bairro Operário e dedicamos-lhe, uma singela homenagem neste livro. Foi um excelente compositor, excelente intérprete e excelente instrumentista, e um empreendedor de sucesso na promoção e divulgação da música angolana. A editora da obra é a Mayamba Editora.

Onde começa de facto a história do Bairro Operário e por onde passa a reverência às suas gentes e famílias?

O Bairro Operário foi construído no Século XX, a partir de 1926, antes os terrenos pertenciam à família Butity, uma família caluanda. O Bairro do Cruzeiro, actual Bairro Patrice Lumumba, foi construído em 1940, para funcionários públicos, estes terrenos pertenciam igualmente à família Burity. Do espaço geográfico do Bairro Operário, incluímos outros itens, nomeadamente; a urbanização, a toponímia, a demografia, o meio ambiente, a limpeza das zonas residenciais, a fiscalização a cargo da Câmara Municipal de Luanda e etc.. Reportamos os dados do último censo populacional realizado em 1970 pelas autoridades coloniais e a divisão administrativa do Distrito de Luanda. Este nome, deve-se ao facto de os seus primeiros moradores terem sido operários da Real Companhia dos Caminhos-de-Ferro de Luanda e da Conduta de Água (Estação de Água). Mais tarde, começou por receber angolanos forçados a sair da Ingombota, do musseque Braga, da Maianga, dos Coqueiros, etc.

Porquê é que o Bairro Operário no tempo colonial era considerado, bairro da elite africana?

Existiam pessoas letradas, pessoas ligadas a associações culturais, literárias, recreativas, pessoas intelectuais, auto-didactas, funcionários públicos e etc..

Como era a vivência entre africanos e europeus naquela altura?

No Bairro Operário existiam lojas de europeus e o negócio destes dependia das compras que os moradores realizavam. Face às dificuldades financeiras, estabeleciam-se acordos verbais entre os chefes das famílias e os comerciantes da zona, num sistema de endossamento de vales/requisições, cujas despesas eram liquidadas faseadamente. Mas, havia comerciantes que durante o dia comportavam-se como “bonzinhos” e na “calada da noite” juntavam-se a outros nas rusgas e actos repressivos contra os nativos.

Como é que Manuel Vaz de Borja Júnior “Novato”, a família e as suas gentes eram encarados pelos europeus e alguns africanos, ali residentes?

Sabíamos como lidar com a situação, a política era clandestina, mesmo com alguns africanos pouco esclarecidos

Circulava-se à-vontade?

Depois dos acontecimentos, de 1961, registados na Baixa de Cassanje, no dia 04 de Janeiro, o 04 de Fevereiro em Luanda e o 15 de Março de 1961, no Norte de Angola, instalou-se uma repressão feroz, ocorreram rusgas, perseguições, prisões. Anos depois, o Estado Colonial, apercebendo-se da evolução da luta de resistência, utilizou uma política mais branda, a psicossocial, fazia investimentos de natureza ideológica e cultural, para garantir o capital social.

Que recordações guarda da sua infância e juventude no lendário Bairro Operário?

As famílias eram generosas, havia cumplicidade nas amizades, os objectivos eram comuns, estava de fora a postura egocentrista, o culto da amizade por razões materiais, o arrolar importância e ostentações. Os mais velhos contavam estórias tradicionais às crianças e, do lado dos mais cultos, contavam-se estórias mais universais.

Do que se ocupava naquela altura?

Em 1974, era funcionário público da Repartição do 3.º Bairro Fiscal, dos Serviços de Fazenda e Contabilidade (entrei por concurso público, em 1968).

Que outras memórias tem do Bairro Operário?

Os estudos colectivos, os almoços sociais, durante as férias estudantis, o futebol de rua, os concursos de domínio da bola, o futebol popular, o público e a arbitragem, os combates, de luta livre, o atletismo, as artes cénicas e lúdicas. O Bairro Operário viu nascer intelectuais, pessoas ligadas às artes culturais, foi o pólo de convergência do nacionalismo angolano. Residiram ícones da luta de libertação nacional e alguns nacionalistas: Dr. António Agostinho Neto, Primeiro-Presidente de Angola, Ilídio Machado, Humberto Machado, Belarmino Sabugosa Van-Dúnem, Amadeu Amorim, Domingos Van-Dúnem, José Mendes de Carvalho (Hoji ya Henda), Deolinda Rodrigues, Roberto de Almeida, Maria Mambo Café, França Van-Dúnem; Jaime de Araújo, Jacob João Caetano (Monstro Imortal), Irene Neto, Ruth Neto, Germano Gomes, João Luís Cardoso, António Alberto Neto, Tony da Costa Fernandes, Juca Valentim, Manuel Júlio Neto (Ngola Kabangu); António Garcia Neto, Miguel Nzau Puna, Alexandre Rodrigues (Kito), Francisco Romão de Oliveira e Silva (Chico Romão), Luísa Filipe, Pedro Filipe (Enoch), Ana Wilson, Nobre Dias, João Garcia (Cabelo Branco), Jaime Madaleno, Guilherme Tonet, Carlos António Fernandes, Nilo Vaz de Borja, Luís Edgar Alves de Ceita, Ernesto Mulato; o mais velho Joaquim de Figueiredo, a esposa senhora Leocádia de Figueiredo, os filhos; Fidelino Loy de Figueiredo, Elísio de Figueiredo, Gentil de Figueiredo (Ninho), Marilina de Figueiredo (esposa do Bispo Emílio de Carvalho) e outros nacionalistas.

Como foram para si os momentos que antecediam ao lançamento do livro?

Ansiedade de rever os amigos, os contemporâneos, as famílias, vê-las a partilharem emoções, viajando pelas ruas do Bairro Operário, de casa em casa, num tempo ido, mas não esquecido.

Fale-nos um pouco do seu percurso como diplomata?

Estando ligado à diplomacia, no cumprimento da carreira diplomática, o diplomata, deve ser hábil e pessoa distinta.

Como e quando decidiu enveredar para o universo das letras?

Por motivação da família, a memória, não guarda tudo, a história oral desaparece com o tempo, de tal modo que, para não ser esquecida, deve ser escrita e registada.

Qual será, o seu próximo livro e o que retratará?

Deixemos que a providência se encarregue.

Percurso do autor

Manuel Vaz de Borja Júnior, natural de Luanda, filho de Manuel Vaz de Borja e de Amélia Nunes Burity, é esposo de Albertina Beatriz Teixeira, e pai de 6 Filhos: Tânia, Vladimir, Natacha, Rossana, Magdala e Herivaldo. Frequentou o Curso Superior de Economia na Faculdade de Economia da Universidade Agostinho Neto, o Curso Superior de Sociologia – na Universidade Jean Piaget de Cabo Verde, e ainda o Curso Superior de Ciências Jurídicas e Sociais no Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais de Cabo Verde.

Tem as formações técnico-profissionais e especialidade em Relações Internacionais – MIREX, Desenhador Cartógrafo e Técnico de Topografia. De 1968 a 1978 trabalhou na Repartição do 3.º Bairro Fiscal, dos Serviços de Fazenda e Contabilidade (Finanças), ocupando, no final, o cargo de Recebedor de Fazenda (Tesoureiro). De 1968 a 1989, como Técnico Superior, ocupou o cargo de Chefe de Departamento de Estudos e Estatística e de Chefe de Departamento Nacional de Recursos Humanos na Secretaria de Estado da Cooperação. De 1989 aos dias de hoje, como quadro sénior, foi diplomata do quadro da carreira diplomática do Ministério das Relações Exteriores.