“Agostinho Neto é o pensador, o guia, o construtor, o artista, o político, o respeitador das tradições”

“Agostinho Neto é o pensador, o guia, o construtor, o artista, o político, o respeitador das tradições”

10 de Setembro de 1979, Angola recebeu em prantos a notícia sobre a morte de António Agostinho Neto, por doença em Moscovo. A 11 de Novembro de 1975, Neto proclamara a Independência, tornando-se o primeiro Presidente da República Popular de Angola e Fundador da Nação. Entretanto, as suas qualidades vão além de Estadista, mas também de humanista, o pensador, o guia, o construtor, o artista, o respeitador das tradições, como descreve a académica e apreciadora da sua obra, Edimira Manuel, com que OPAÍS conversou sobre a dimensão cultural do escritor e polido poeta de “Sagrada Esperança”, “Renúncia Impossível”, que, se ainda estivesse entre nós, estaria a completar o seu Centenário, no próximo dia 17

Quando começa a interessar- se pela obra do Dr. António Agostinho Neto?

Depois que comecei a ler os seus poemas de forma mais intensa. Já conhecia o extenso “Renúncia Impossível”, desde o ensino médio. Tínhamos exercícios de leitura em voz alta nalgumas vezes. Depois disso, numa aula sobre análise poética na Universidade, tive contacto com o poema “Partida para o Contrato”. Interessei-me pelo jeito de construir sentidos que emanavam dos versos desse poema. Essas experiências dialogam para expandir mais os horizontes. Eram só leituras. Hoje interessam-me muitos aspectos ideológicos e as observações respeitantes à história e aos problemas actuais do (a) angolano (a) e do africano (a) presentes na sua obra.

Por que razão Neto?

Os poetas têm uma maneira de ver as coisas a partir delas mesmas. Desde há muito tempo, os problemas das sociedades persistem porque falta aos vivos sapiência e sentido de justiça, que se traduz ao como proceder e em que proporção entre as partes envolvidas. Por isso vamos ver medidas diferentes e às vezes contrárias, de tal modo muito deslocadas do que era melhor. Para dizer que a poesia de Agostinho Neto sintetiza nos seus versos a condição humana, desde o mais básico ou essencial, que é da vertente das necessidades, sendo um observador -reivindicador, e aos mais complexos como os questionamentos existênciais.

Como assim?

O paradoxo que expressa os contrários e o contraste de estar ora num estado ora noutro tipo de aura, como que um ser que vislumbra a vida em todos os ângulos. E todos os dias que leio Agostinho Neto, vejo muitas coisas. Sinto coisas. E também sinto que conheço a metade dele. Há uma relação entre ele e eu que é proporcionada pela escrita dele e pela minha leitura. Isso acrescenta em mim conhecimento e aconchego. É interessante!

Quando olha para a sua dimensão cultural, que aspectos saltam à vista?

Um ser nasce quase minúsculo, tendo antes passado por delicados processos de constituição pela concepção. É um conjunto de interligações: sémen mais óvulo, embrião, bebé, criança, adolescente, adulto, velho e uma destituição terminal de matéria. Nasce com traços e desenvolve através da educação, esta, um elemento disso que nós chamamos de cultura, que compreende um conjunto de criações humanas, desenvolvidas através dos tempos, transformada pela diversidade de ideias e procedimentos desde as ideias, crenças e práticas das várias áreas que respondem pelas necessidades humanas. Aqueles que dialogam com a história dizem através dos seus ditos que Agostinho Neto é um ser plural. A sua preocupação pelo desenvolvimento e integridade do angolano e do negro, a sua preocupação pela reparacão da verdade, e uma das mais soantes: a contínua lapidação do homem novo, um homem que se renova todos os dias através de uma sagrada esperança que deve ser ele mesmo responsabilizado pela esperança que os outros eus têm nele. É o pensador, o guia, o construtor, o artista, o político, respeitador das tradições, etc.

O que é que deve ser mais ressaltado sobre a dimensão cultural de Neto, além dos seus escritos?

A humanidade nele. Que explico com as palavras de outrora, aquando das apresentações das obras biográficas que a sua esposa dedicou em sua honra e memória. E quase tudo é possível ver nos seus traços poéticos. Qualidades humanas essenciais para a vida: amor à pátria, justiça, persistência, irmandade, firmeza e caridade. Valores que também são culturais.

Qual é o olhar crítico que faz do livro “Renúncia Impossível”?

O título refere-se a um poema extenso que integra o volume segundo (18 poemas) da trilogia poética Netiana. Deste volume, é mais notável o último poema “Renúncia Impossível”. Trata-se de um poema de 14 páginas, repartido em dois grandes momentos: I Negação e Afirmação. Esse poema é um expresso paradoxo que traz à clareza marcas de um existencialismo aparentemente em crise, mas não nos enganemos, pois é também uma expressão irónica da superioridade branca. Uma expressão satirizada. E também uma expressão do cansaço e do desespero que recobra na segunda parte da “Afirmação”, uma reposição da clareza e da firmeza, do juízo, expressão de amor também, reivindicando assim justiça:

“<<Eu sou. Existo./As minhas mãos colocaram pedras/Nos alicerces do mundo/Tenho direito ao meu pedaço de pão>>

<<Sou um valor positivo/da humanidade/e não abdico,/nunca abdicarei!>>

<<Seguirei com os homens livres/O meu caminho/para a liberdade e para a Vida.>>”… In “A Renúncia Impossível”

E em relação ao histórico-filosófico do património cultural e poético de Neto, que análise faz?

É uma obra que serve também para as futuras gerações aprenderem sobre a história dos nossos outros antepassados. Um testemunho dos problemas do passado. E muitas máximas para formar novas ideias e continuar a luta pela independência e pela contínua Reconquista para a edificação do homem novo e da “nova África para a harmonia do mundo”.

Há ainda discursos desconhecidos que marcam o legado de Neto, como olha para o discurso poético na obra Amanhecer?

É um pequeno livro de poemas. É a expressão da certeza pelo futuro e um contínuo a relembrar da necessidade de se honrar os antepassados e trabalhar pela manutenção da unidade entre os povos. Olhe para esses versos, de “Paredes Velhas” e “Sobre o sangue ainda quente do meu irmão”:

“<<Levantaremos novos monumentos/ paredes novas/que dirão aos nossos filhos/o que nós juntos/ vamos edificando.>>

<<Juntos serão lembrados/os nossos nomes/como juntos nós temos oferecido/em holocausto à vida>>

<<E os filhos dos nossos filhos/de mãos dadas/orgulhar-se-ão de nós.>>

“<<Unidade cimentada pelo sangue/ União plantada sobre a terra/ Germinado no meu gesto/Crescendo na minha voz/Gritando no teu olhar”>>. É preciso aprender a ler.

Que desenho pode elaborar sobre o legado performativo na obra de Neto?

Só posso imaginar. Hoje é possível ouvir os seus discursos enquanto Presidente de Angola. Ler os ensaios. Ouvir testemunhas de outros estudiosos. Através dessas pesquisas tenho algumas noções de quão actuante era.

Dado o momento actual da literatura, que avaliação faz e que comparação pode fazer em relação à primeira geração da literatura angolana?

As gerações existem em cada época para cada uma responder às exigências da época. Agostinho Neto fez parte daquele grupo preocupado de tanto cantar a história e geografia dos lugares de Portugal, sem saber sobre as praias, planícies e montanhas de Angola. Então, declararam: Vamos descobrir Angola. E com os seus trabalhos, traçaram caminho para a definição de uma literatura propriamente angolana. Que se preocupasse com os seus próprios problemas e cantasse ela mesma a sua própria história e geografia. Hoje não é como ontem. E não é esse o problema. O problema é que se desvaloriza hoje o livro, um elemento que facilitou até a luta pela liberdade. A história do livro em Angola é que precisa ser levada em conta. Não podemos conhecer os nossos antepassados, se não podemos estar em contacto com os seus pensamentos. Reeditar e divulgar Óscar Ribas, é preciso. Ruy Duarte de Carvalho, Henrique Abrantes. É preciso proliferar a leitura.

O que acha que Neto teria feito ou dito sobre a situação sócio-cultural e artístico actual, se estivesse em presença física?

Sabemos todos.
“A luta continua”
“É preciso resolver os problemas do povo”
“A esperança somos nós”
“Coloquei pedra nos alicerces do mundo”

“Mereço o meu pedaço de pão” e mais.
Eu digo: é preciso honrar os seus ideais.
Criar. Criar. Criar.

Que memórias reserva do programa “Hora da Letra”, onde passam distintos e ilustres autores da literatura angolana, o que de mais relevância a marcou, a conversa com os escritores ou a alva da palavra, o espaço aberto de conversa livre sobre as literaturas?

A voz que empresto à poesia é o exercício contínuo de colectar memórias. Acredito que a memória é uma das coisas mais importantes da humanidade. É honroso conversar com quem vive e comunica com as palavras e ser transformada pelas ideais. Cada espaço exigia-me muita reflexão e contínua criatividade, sem esquecer o exercício da pesquisa. Sempre fui muito exigente comigo mesma. E lembro-me especialmente da vez que o Francisco Makiesse pediu que eu elaborasse uma entrevista para uma poetisa. E depois disse-me que eu poderia proximamente fazer mais entrevistas. E então num dia falou-me sobre o “Hora da Letra”, programa do Atelier D’Artes Lucengomono emitido na 89.1 FM, Rádio Tocoísta desde 5 de Agosto de 2021.Um sonho que tive e que descobri que alguém havia sonhado também. Então decidi que se precisavam de mim para realizar o sonho que não era apenas meu, eu estava pronta e feliz porque eu amo Literaturas! E meu sonho é também o aperfeiçoamento pelo aprendizado e pela prática do conhecimento.