luanda leaks: isabel dos Santos foi alvo de conspiração?

luanda leaks: isabel dos Santos foi alvo de conspiração?

Ao início de uma noite muito fria de Janeiro, um balde de água gelada tombou em Lisboa sobre os promotores de Luanda Leaks, um processo público movido contra a empresária angolana Isabel dos Santos. Os documentos que serviram de base a uma campanha destinada a assassinar o carácter da angolana, desenvolvida, ao longo de uma semana, 24 sobre 24 horas nos 7 canais de televisão portuguesa, de uma forma febril, provinham afinal de um assalto informático, perpetrado por um jovem de nome Rui Pinto, que se encontra nos calabouços da Polícia Judiciária portuguesa em prisão preventiva, após ter sido apanhado, com o recurso a um mandado internacional, na Hungria.

A judiciária portuguesa conseguiu apreender ao hacker vários dispositivos de armazenamento externo que contêm, pelo menos parte, do fruto dos seus assaltos: é nesses discos externos apreendidos que se encontram os ficheiros que constituem o Luanda Leaks. Sabendo que a judiciária portuguesa tinha em seu poder os polémicos documentos que sustentavam as alegadas acusações a Isabel dos Santos, Rui Pinto pediu aos seus advogados que fizessem a revelação.

O currículo de Rui Pinto, o pirata informático, é vasto. Entre as suas vítimas contam-se Cristiano Ronaldo, Messi, Neymar, o Sporting, a Federação Portuguesa de Futebol, a ‘Doyen Sports’, sobre a qual terá exercido extorsão, e até… a Procuradoria Geral da República Portuguesa. Já se desconfiava nos meios portugueses que a origem dos ficheiros, posteriormente entregues ao dito sindicato de jornalistas que sobre eles terá construído a narrativa sobre os negócios de Isabel dos Santos, provinham de Rui Pinto, que partilha o mesmo advogado de Ana Gomes, a ex-deputada portuguesa e velha conhecida de Angola e que assumiu o estrelato da campanha, talvez não tanto para atingir Isabel dos Santos, mas para desferir um golpe a António Costa, líder do seu partido, o socialista e com quem a deputada tem péssimas relações, uma tese que OPAÍS ouviu ser defendida por analistas políticos portugueses.

E a verdade é que Ana Gomes, uma radical, acaba de ouvir de Francisco Assis, um moderado, mas também opositor de Costa, a sugestão pública de que deveria ser ela a candidata dos socialistas no próximo confronto presidencial com Marcelo Rebelo de Sousa, um Presidente no auge da popularidade, e oriundo do partido rival, o PSD, e que o primeiro-ministro português preferiria apoiar discretamente.

Agora, a ala mais radical do seu partido confrontá-lo-á com a candidatura da deputada.

Exaltação do crime

A confirmação pública de que os documentos utilizados para acusar Isabel dos Santos eram roubados, não podendo, sendo ilegais, ser usados em tribunal, congelou as redacções, preparadas para dar curso ao “apedrejamento”. A primeira reacção foi de recuo. As televisões, ao sétimo dia, deixaram de abrir os noticiários com o caso da empresária angolana. Mas logo surgiu uma ideia: a de que Rui Pinto poderia ser absolvido, ou pelo menos beneficiar, como indiciado criminoso, de um estatuto de excepção, por ter feito um “serviço público” ao assaltar as empresas e escritórios de advogados e consultores com os quais a empresária angolana mantinha relações.

Um jornalista português, Miguel Sousa Tavares, que escreve semanalmente uma página inteira no semanário Expresso de Balsemão, chegou a propor na televisão, que o hacker seja promovido a responsável pela informática da Polícia Judiciária portuguesa e ainda a sua condecoração pelo Presidente da República português, a 10 de Junho, Dia de Portugal. Outros episódios insólitos, escabrosos para quem tenha uma capacidade de indignação mais sensível, já se tinham passado antes. Multiplicaram-se ao longo da semana de campanha intensiva contra Isabel dos Santos.

O deputado único do partido “Chega”, de extrema-direita, sugeriu num programa designado “Rua Segura” do canal televisivo do Correio da Manhã, especializado em crime, que Isabel dos Santos poderia estar ligada a um possível incitamento ou coacção no suicídio de um director do BIC Europa, que era também arguido em Angola. Uma câmara escondida do mesmo canal, percorreu, numa longa reportagem, os corredores da clínica de Barcelona onde efectua tratamentos o anterior Presidente da República de Angola, ponteando a visita com comentários que nada têm a ver com a saúde de José Eduardo dos Santos. O mesmo deputado do “Chega” acaba de sugerir a deportação para a Guiné-Bissau, seu país de origem, da deputada negra (a única no parlamento português) Joacine Katar Moreira do estreante partido de esquerda Livre.

Incontáveis mentiras foram ditas e repetidas ao longo da campanha. Impossível referi-las neste espaço. Tomemos só alguns exemplos. A de que Isabel dos Santos teria entrado na banca portuguesa através do Banco Português de Negócios (falido). Não é, de facto, verdade. Já muito antes, o BIC, que comprou o BPN a pedido do Governo português, instalara-se em Portugal. Em 2013, Fernando Teles, um dos maiores accionistas da instituição a par de Isabel dos Santos, dizia, em entrevista a OPAÍS, no final de 2013, que “o BIC Português, desde que tomámos conta do BPN, duplicou os depósitos.

O BPN tinha 1,8 mil milhões de euros de depósitos, nós tínhamos mais cerca de 300 milhões de euros no BIC Português, o que somava a 2,1 mil milhões, hoje estamos com 3,8 mil milhões de euros em depósitos”. O que se fez passar em Portugal como novos factos “escaldantes” trouxe menos informação do que aquela que já era conhecida. Mesmo nos casos menos falados como a venda de diamantes à De Grisogono, detida por Sindika Dokolo, marido de Isabel dos Santos o que já se sabia é mais do que suposições avançadas pela campanha. A imprensa noticiou em 2016 que a De Grisogono adquirira os direitos de polimento do maior diamante então descoberto em Angola, uma pedra de 404,2 carates, à trader Nemesis International.

Dois meses antes, a Endiama e a Lucapa haviam anunciado a sua venda por 16 milhões de dólares, ou seja 39,5 dólares por quilate, um valor recorde para um diamante branco. Não foi divulgado o valor envolvido na transacção com a De Grisogono, mas, segundo a Bloomberg, o intermediário comprou o diamante por 22,5, milhões de dólares. Isabel dos Santos já comunicou ir processar o sindicato internacional de jornalistas que desenhou, sob a orientação de William Bourdon, o receptador de Rui Pinto, a campanha sobre Isabel dos Santos, com base nos documentos furtados pelo pirata.

O sindicato de jornalistas encontra-se em Washington, mas a plataforma de Bourdon tem sede em Paris. No conjunto, os jornalistas limitaram-se a exibir o património de Isabel dos Santos (nunca mostrando, contudo, as empresas onde esta participa), associando a relação com consultoras a fraude fiscal, o que é um argumento fraco, pois sabe-se que são os consultores que fazem o planeamento fiscal do cliente.

Um assunto que é objecto de discussão teórica, mas está longe de configurar um crime. A empresária já reagiu e vai processar o alegado consórcio de jornalistas. Isabel dos Santos contesta o modo como os ficheiros foram apresentados ao público, considerando terem sido “usados selectivamente imagens e documentos mal interpretados e supostamente baseados em e-mails obtidos criminalmente por via de hacking para construir uma narrativa enganosa sobre as minhas empresas, investimentos e trabalho em geral”. E acusa os meios de comunicação social que integraram a campanha de terem utilizado “agências de comunicação e imagem para criar logotipos, slogans e até contratar espaços publicitários nas caixas de multibanco”.

Nada de novo sob o sol

De concreto, a campanha assentou nas operações financeiras autorizadas por Isabel dos Santos na Sonangol no curto período em que esteve à frente da petrolífera, as quais foram objecto de investigação pela Procuradoria Geral da República de Angola. O arresto das participações da empresária em Angola, na sequência de uma providência cautelar, e a sua constituição e de mais quatro pessoas como arguidas sob a acusação de crimes de “peculato, falsificação de documentos, abuso de poder, participação económica em negócio, tráfico de influências e branqueamento de capitais”, são a única novidade nas acusações a Isabel dos Santos, mas provêm da Procuradoria Geral da República e não do Luanda Leaks… Ainda por cima, qualquer documento ligado ao Luanda Leaks que eventualmente se pudesse acrescentar aos já reunidos pela justiça angolana confronta-se agora com um obstáculo: trata-se de objectos roubados, obtidos através de actos ilícitos, estando o autor dos furtos de tido preventivamente e sob fortes acusações.

A Constituição portuguesa proíbe a sua admissão como prova. Poderá, quanto muito, fornecer indícios que levem as autoridades a obter prova própria. A Procuradoria Geral da República angolana já solicitou colaboração à sua congénere portuguesa. A questão que se coloca é, face à lei portuguesa, até que ponto se pode estabelecer esta colaboração no caso Isabel dos Santos. Esta, no comunicado que emitiu, reitera argumentos que já tinha avançado quando Carlos Saturnino, seu sucessor, chamou os jornalistas à sede da petrolífera dia 23 de Fevereiro de 2018 e formulou acusações à administração cessante, presidida pela empresária.

Curiosamente, na altura, pareceu que a tónica era mais posta na questão das contas bancárias mais utilizadas pela Sonangol que na questão dos consultores. Isabel dos Santos retoma agora o tema, lembrando que, face à situação da Sonangol e à necessidade de elaborar um projecto de reestruturação da empresa o Executivo decidiu que esta “integraria várias consultoras internacionais como BCG, PWC, McKinsey, VdA, entre outras das diversas especialidades, exigia a existência de um consultor responsável pela coordenação global e transversal do programa”. A função foi atribuída à Matter Business Solutions (uma empresa sediada no Dubai, detida por pessoa da sua confiança), em substituição da Wise Consulting, empresa em que a empresária tinha interesses directos.

A cedência de posição foi feita através de contrato). A Matter assumiu a sua “qualidade de coordenador transversal do projecto de reestruturação do Grupo Sonangol e (os consultores contratados) receberam pagamentos de cerca de 90 milhões de dólares, efectuados pela Matter Business Solutions”. Quanto às verbas despendidas no projecto de reestruturação, Isabel dos Santos argumentou, por altura das acusações feitas por Carlos Saturnino, em 2018, que “o conselho de administração a que presidi reduziu para cerca de metade os custos com consultoria comparativamente à média anual no período 2013-2015”.

As acusações de Carlos Saturnino cobriam diversos campos, desde a participação na energética portuguesa GALP, aos salários dos administradores, passando pela contas bancárias. A polémica foi acesa, apaixonando a sociedade angolana, e levou Isabel dos Santos a processar Carlos Saturnino por difamação, acção de que viria a desistir posteriormente. Mas a Procuradoria Geral da República, que pede agora auxílio a Portugal, não deixou de investigar.