Mady Biaye: “É preciso assegurar que as crianças nasçam bem em todo o canto do país”

Mady Biaye: “É preciso assegurar que as crianças nasçam bem em todo o canto do país”

Desde 11 de Dezembro de 2020 como Representante Residente do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), Mady Biaye fala nessa entrevista dos seus desafios em Angola, onde se destacam a luta pela eliminação até 2030 da mortalidade materna evitável, das necessidades não satisfeitas de planeamento familiar e da violência baseada no género, incluído práticas nocivas. Diz-se preocupado pelo número de mulheres no país com necessidades não satisfeitas de planeamento familiar que representa 36%, que não conseguem planificar por não disponibilidade ou de conhecimento de serviços ou por falta de dinheiro para aceder aos serviços, bem como com as 30% das meninas que se casam antes dos 18 anos. Entretanto, dá uma nota positiva aos esforços e disposições legais que garantem às mulheres e aos homens igualdade de acesso aos cuidados de saúde sexual e reprodutiva, aos cuidados de saúde materna e neonatal e à luta contra o VIH/SIDA

Assumiu as funções de Representante Residente do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) em Angola a pouco mais de seis meses. Que desafios tem traçado para o seu mandato?

Gostaria primeiro de agradecer a visita do vosso Jornal aos escritórios do UNFPA. Encontrei uma nova Angola depois de ter estado cá nos finais de 2008 na qualidade de conselheiro técnico regional do UNFPA em 15 países da África Austral na área de dados, pesquisa, análises, e operações estatísticas como inquéritos e censos.

Em termos de desafios relacionados ao trabalho, importa sinalizar que Angola está numa boa fase na área do desenvolvimento sustentável e para mim o principal desafio para todos os países africanos é o de dar possibilidade aos jovens para realizarem os seus potenciais, tendo em conta que a maior parte da população é jovem. Juventude significa energia, criatividade e inovação. É preciso assegurar que em termos de saúde haja disponibilidade para todos, particularmente as crianças e jovens. Temos de assegurar que as crianças nasçam bem em todo o canto do país, mesmo em lugares com acesso muito difícil porque é assim que se mede o desenvolvimento. Quando há soluções e oportunidades ninguém deve ficar para trás.

Ficar na escola também é um desafio, particularmente para as raparigas por causa das gravidezes precoces. Tem de se disponibilizar conhecimento e a informação para os adolescentes para que eles sintam que têm direito a se proteger. Uma rapariga que está grávida pode hipotecar os seus estudos. A população africana é maioritariamente jovem e tem crescido muito.

Mas este crescimento da população contrasta com desenvolvimento económico? 

É isso que em termos técnicos chamamos de dividendo demográfico, porque a partir dos 15 anos quando o jovem entra no mundo da produtividade tem de encontrar condições para o emprego porque apesar de educação e capacidade serem duas coisas diferentes, elas estão relacionadas e andam juntas. Porque a população vai sempre aumentar, e se não darmos essa oportunidade de transformar os desafios em oportunidades concretas no país essa situação pode ser mais difícil. Mas temos de dizer que o papel do Governo não é o de dar empregos, mas sim criar condições para que essas possibilidades existam, pois o maior empregador de um país que se desenvolve é o sector privado e a iniciativa privada para diversificar a economia.

Mas a minha preocupação como Representante do UNFPA é o foco que devemos ter nas mulheres, adolescentes, jovens e, nomeadamente, as raparigas que são mais vulneráveis, por isso traçamos objectivos.

E quais são esses objectivos?

Os objectivos são três a atingir até 2030: Primeiro queremos acabar com as mortes maternas evitáveis. Vamos ver onde vamos chegar até 2030, mas queremos isso nesta década porque o nascimento deve ser uma felicidade e nenhuma mulher deve morrer dando à luz.

O segundo é o planeamento familiar porque temos mulheres que gostariam de ter acesso aos métodos contraceptivos e não conseguem por causa da distância ou porque não têm dinheiro para apanhar o transporte. Então, queremos também acabar com essas necessidades não satisfeitas de planeamento familiar. Não é proibido ter um número de filhos, mas é importante que venham em momento certo segundo a definição de casal. E para que isso aconteça tem de planificar. Em Angola 36% das mulheres querem planificar mas não conseguem por falta dinheiro de transporte ou distância da unidade e outras barreiras. Isso representa quase 1/3 das mulheres em idade reprodutiva. Essas coisas não são tabús, mas às vezes não se fala em casa. Os pais não falam com os filhos sobre isso, por esta razão, temos estado a falar, constantemente, sobre o assunto.

A terceira dimensão é acabar com a violência baseada no género e as práticas nocivas como o matrimónio precoce ou infantil. E aqui também temos dados interessantes e alarmantes porque 30% das raparigas em Angola se casam antes dos 18 anos. Porquê razão uma menina vai se casar quando não tem 18 anos? Porquê que tem de haver diferença entre a idade do homem e da mulher para o casamento? E é um trabalho que se pode começar a partir da legislação. O meu país, Senegal, também tem muitos desafios e, felizmente Angola não faz, por exemplo, não pratica a mutilação genital, mas não quer dizer que esta prática nociva não existe, mas o continente não pode desenvolver como ilhas onde uns fazem e outros não.

Quais são as outras soluções para se ultrapassar essas três barreiras que mencionou para além da escolarização?

Outras soluções tem a ver com os programas de cooperação com o Governo que estamos a implementar. Mas os resultados não se alcançam só porque é necessário a colaboração de cada um. A sociedade civil está a fazer o seu trabalho, o Governo está a fazer o seu trabalho e todo o sistema das Nações Unidas está a fazer o seu trabalho porque é um desafio comum. Todos estes esforços conjuntos devem ser desenvolvidos sob a liderança do Governo e em colaboração com todos os parceiros de desenvolvimento, incluindo o sector privado e a cooperação bilateral e multilateral.

De que forma o relatório da Situação da População Mundial 2021 que vão apresentar a 29 do corrente mês pode contribuir positivamente para a eliminação dos aspectos negativos que frisou?

O relatório anual da Situação da População Mundial – SWOP existe desde 1978 e é um trabalho de parceria entre o UNFPA, Governos e sociedade civil, na garantia dos direitos das meninas e mulheres.

De facto, em 2015 as Nações Unidas adoptaram a sua Agenda transformadora para o Desenvolvimento Sustentável até 2030 e os 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável que a acompanham, tendo estabelecido (230) indicadores para ajudar os governos a acompanhar os progressos no sentido de alcançar os objectivos e as suas (169) metas conexas, incluido a meta 5.6, a realização da saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos para todos. É uma meta do ODS 5 de Igualdade de Género.

Foram identificados dois indicadores para medir o progresso nesta área. O primeiro, indicador 5.6.1, visa medir a proporção de mulheres com idades compreendidas entre os 15 e os 49 anos que tomam as suas próprias decisões informadas relativamente às relações sexuais, uso de contraceptivos e cuidados de saúde reprodutiva. O segundo indicador, indicador 5.6.2, regista o número de países com leis e regulamentos que garantem o acesso pleno e igual a mulheres e homens com 15 anos ou mais aos cuidados de saúde sexual e reprodutiva, informação e educação.

Este relatório marca a primeira vez que medimos o poder das mulheres de tomar decisões autônomas sobre sexo e reprodução, e em que medida é apontar as leis e as políticas favorecem ou dificultam a capacidade de decisão do indivíduo.

Neste relatório, o UNFPA destaca a razão pela qual a autonomia corporal é um direito universal que deve ser defendido. O relatório revela a gravidade dos défices de autonomia corporal; muitos agravaram-se sob as pressões da pandemia da COVID-19. Neste momento, por exemplo, números recorde de mulheres e raparigas estão em risco de violência baseada no género e de práticas nocivas, tais como o casamento precoce.

O relatório também esboça soluções que já estão à mão, ao mesmo tempo que faz notar que o sucesso requer muito mais do que uma série desconectada de projectos ou serviços, por mais importantes que estes possam ser. O progresso real e sustentado depende largamente do desenraizamento da desigualdade de género e de todas as formas de discriminação, e da transformação das estruturas sociais e económicas que as mantêm.

Em Angola, temos de estimar o trabalho que está a ser feito no que diz respeito aos esforços e a igualdade de acesso aos cuidados de saúde sexual e reprodutiva, aos cuidados de saúde materna e neonatal e à luta contra o VIH/SIDA. Contudo, ainda há muito a fazer, especialmente na área da educação sexual abrangente para adolescentes e jovens, para garantir o acesso à informação e ao conhecimento.

Temos é de trabalhar sobre a falha do sistema em termos de recursos humanos na educação sexual abrangente formalizada na escola e fora de escola. É preciso dar a oportunidade às pessoas de ter a informação, há mulheres que não vão à consulta pré-natal porque não sabem. E isso contribui muito a mortalidade materna o rácio é de 241 mortes maternas por cada 100 mil nados vivos. É muito elevado.

Porquê que o UNFPA escolheu para este ano como tema “o meu corpo pertence-me”?

O tema é muito apelativo porque é uma questão sensível, mas depende do contexto de cada país e de quem lê, porque um interpretação que faz aqui pode não ser feita em um país de outro continente. Uma rapariga tem direito de se recusar a casar, por exemplo, aos 14 anos. Mas nem todas têm essa noção na nossa sociedade. Nem todas as práticas tradicionais são boas e podemos continuar a promover acções que metem em perigo a vida das pessoas, como por exemplo a mutilação genital.

É interessante ler o Relatório para comparar os dados estatísticos de todos os países, ver algumas variáveis e contextualizá-las. Quando se contextualiza se entende melhor. Há muitas coisas boas contempladas no relatório, como o empoderamento das pessoas, mulheres, adolescentes e jovens para que eles tenham uma certa autonomia para se realizar. Porque se eu sou empoderado tenho conhecimento e informação suficiente e informação de como fazer as coisas para realizar-me e também contribuir para o desenvolvimento do país. Se falharmos neste aspecto tornamos as pessoas num encargo porque não contribui.

Biografia

Dr. Mady Biaye possui um diploma de Engenheiro Estatístico da ENEA em Dakar, Senegal. Conta com Licenciatura, Mestrado e Doutoramento Superior pelo Instituto de Demografia da UCL, em Louvain-la-Neuve, Bélgica. É proficiente em inglês, francês, português e espanhol.

O novo Representante do UNFPA em Angola desde 11 de Dezembro de 2020, nas últimas décadas, exerceu cargos de realce no sistema das Nações Unidas em vários países africanos, sendo a paragem anterior na Guiné-Equatorial.

Na Guiné-Equatorial, Dr. Mady Biaye foi Representante Residente do UNFPA (2016-2020), Coordenador Residente das Nações Unidas interino/Oficial Designado para a Segurança (2018-2020), Representante Residente da OMS interino (Junho – Dezembro de 2020) e Coordenador COVID-19 para o Sistema das Nações Unidas/Coordenador de Campo Designado da MEDEVAC (Março – Novembro de 2020).

De 2008 a 2016, foi Conselheiro Técnico Regional em População e Desenvolvimento e de Dados para o Desenvolvimento e Política de Dados Populacionais no Escritório Regional do UNFPA para a África Oriental e Austral, em Joanesburgo, África do Sul. Entre 2001 e 2008, desempenhou a função de Conselheiro Técnico Regional do UNFPA e UNECA em Dados Populacionais, Análise e Investigação, na Equipa de Apoio Técnico do UNFPA para a África Austral, com base em Harare, Zimbabué.

Antes desses cargos, Dr. Mady Biaye trabalhou de 1995 a 2001 como Especialista e Consultor Sénior em várias agências do sistema das Nações Unidas em Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Washington D.C., nos Estados Unidos da América.

De 1989- a 1994, foi professor e investigador em tempo inteiro na Universidade Católica de Lovaina (UCL) e no Centro Internacional de Formação e Investigação em População e Desenvolvimento, em associação com as Nações Unidas (CIDEP), em Louvain-la-Neuve, Bélgica. De 1984 a 1987, foi professor e chefe adjunto do Departamento de Estatística e Demografia na Escola Nacional de Economia Aplicada (ENEA), e professor assistente na Universidade Cheikh Anta Diop, Dakar, Senegal.