Paulo Flores & Yuri da Cunha com coração, saudades e emoção em “Njila ia Dikanga”

Paulo Flores & Yuri da Cunha com coração, saudades e emoção em “Njila ia Dikanga”

Foi em Abril do ano passado que, numa das “sentadas” criativas que estes amigos fazem, várias ideias musicais foram rabiscadas. Mais tarde, reuniram-se para seleccionarem as mais sólidas, tendo gravado “Njila ia Dikanga” em Janeiro. Trabalhando em conjunto da melhor forma que sabem, a peça musical “Njila ia Dikanga” levou aos artistas condecorados aproximadamente oito meses, desde a concepção do tema, à composição e casamento com a melodia. Na letra, Flores transbordou a sua alma, dando vida às suas avós numa homenagem merecida, porque, para ambos os músicos, as anciãs são arcas do tesouro, guardiãs de amor, lições de vida, sonhos e saudades.

Paulo Flores e Yuri da Cunha são companheiros de longa data. Há décadas, permitiram à amizade criada tornar-se em irmandade e, nas comemorações familiares, um está sempre presente no lar do outro. São também compadres. Yuri da Cunha vê no “Ti Paulito” uma inexorável luz, que reflecte o amor que não lhe cabe no peito, amor que sente igualmente pelo país que os viu nascer e também aos seus pais. Sobre esta relíquia musical, as manifestações de apreço por parte do público não param de surgir, principalmente de quem é angolano e conheceu a Angola de outrora, sendo esta composição uma milagrosa máquina do tempo. Nos três primeiros dias de circulação na indústria artística, Paulo Flores disse que as mensagens recebidas espelham que todos se identificam com a história narrada na canção, especialmente quem um dia a viveu e protagonizou.

“Sentir, sinta quem lê.” [Fernando Pessoa] Enquanto compositor, músico e cantor, talvez se possa aplicar o mesmo princípio. Independentemente disso, Paulo Flores, que mensagem pretendeu transmitir com a vossa música e, o que é que sente, cada vez que a canta?

P.F.: Quer-me parecer que o Fernando Pessoa usou a sentença como provocação, talvez para desviar a atenção da permanente dor que o assolava ao escrever. As pessoas surpreendem-nos, por vezes conseguem ver sinais mais marcantes do que os que pretendíamos transmitir. Em “Njila ia Dikanga”, senti todas as palavras que escrevi sobre as nossas avós. É um consolo para mim, contudo, porque a cada vez que canto sinto tudo, cada vírgula, até as mal postas, há alturas em que prefiro não ter de cantar certas músicas pois, a carga é profundamente pesada, em cada palavra.

Yuri da Cunha, em toda a letra da música, quer em português, quer em Kimbundu, qual é o verso que tem um significado mais forte para si? Porquê?

Y.C.: É certamente a frase “muitos mudaram de vida, mudaram até o sonho que a gente sonhava”, porque, na infância, todos nós éramos um só, a mesma tradição, as mesmas origens. Hoje, cada um foi em busca da sua felicidade, espalhados pelo mundo, com ideias diferentes, dá a sensação que, o que falávamos antigamente não passava de fantasia, mas, eu continuo ligado a esse sonho colectivo.

“Mamã me disse, não esquece a dor da terra, não esquece de voltar”, esse era o desejo e lição última que aprendeu das suas ancestrais. Mas, e você, Paulo Flores? O homem que é hoje quererá um dia voltar? Porquê? O que é que tem dentro de si, que lhe faça querer permanecer, mudar, ou voltar?

P.F.: No nosso íntimo, o homem ainda é aquela criança, e poderá ter esse portal aberto para sempre, enquanto viver. O sonho de voltar persiste, deve-se às memórias que tenho, de correr na areia alaranjada… Quando criança, a cada regresso a Angola, as minhas avós corriam na minha direcção para envolverem-me nos seus braços. É esse o nosso ideal, também vejo isso no Yuri, voltarmos ao lugar onde já fomos felizes e, se calhar, nem reparámos. Porquê? Não se explica… É uma forma de existir. Os nossos ensinamentos, o amor, o Kimbundu as histórias, até o feitiço… (Risos) A minha avó, quando já vivia há 20 anos em Portugal ainda dizia: “não assobies à noite, chama cobras”. O Waldemar Bastos resumiu esse sentimento num verso, cantando “não me perguntes quando volto. que eu nunca saí de Angola”.

O Yuri da Cunha é ligeiramente mais novo do que o Paulo Flores. Porém, a percepção que se tem quando cantam é que têm a mesma idade, viveram a mesma história, sentem a música com a mesma intensidade, o que transparece a enormidade da vossa amizade. O que é ele para si, enquanto músico e amigo?

Y.C.: O Paulo Flores, “Ti Paulito”, é um ser de amor, um mestre de luz, dá vida, é um ser que faz milagres porque, com uma música, conseguir fazer estremecer os sentimentos alheios, é um milagre nos dias de hoje porquanto, actualmente, ninguém escuta ninguém, não se dá valor à profundidade das palavras. Ele significa muito para mim e, sei que o amor que sinto por ele é recíproco, inclusive, na música ele diz “eu te amo tanto meu irmão Yuri da Cunha, eu te amo tanto meu irmão”…

P.F.: Somos amigos e compadres, sou padrinho do Júnior, filho do Yuri e ele é muito ligado aos meus filhos, e eu aos dele, temos uma cumplicidade mesmo familiar, reflexo do amor fraternal que sentimos e os nossos filhos também. Respeitamos a cultura, tradições, memórias, afectos e amor, e essa homogeneidade e harmonia transparecem também quando cantamos.

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Ou ainda “Na vida, a única constante é a mudança”. Paulo Flores, se tivesse outro poder sobre-humano, para além do de encantar quando canta, o que é que manteria exactamente igual, para sempre? Na sua vida e no mundo?

P.F.: Para o mundo, termos hoje todas as pessoas que perdemos e sermos capazes de, apesar de tudo, manter viva a chama de criança que crê que a última palavra é sempre a esperança, sempre. Para mim, queria tê-los de novo, vivos, reais e inteiros, o meu pai, as minhas avós, o meu primo, os amigos mais chegados, porque era para ser nós todos.

Trata-se de um Semba muito especial, inscrito na história da música angolana. Uma sentença impossível de se ignorar é “miséria já paga I.V.A.” Será simultaneamente uma chamada de atenção para o estado do país?

Y.C.: Soa-me mais ao desabafo de um angolano. Porque, fazemos parte desta sociedade, logo, o que sentimos e vivemos, exprimimos musicalmente. Não é direccionado a este ou àquele, é um pouco para todos nós. O que queremos mostrar é o amor pela terra, o carinho que temos por ela, que nos persegue diariamente.

“Quando eu voltei, casa já não é casa, chão já não é terra, Kamba já não te avisa…” Se as suas avós voltassem à Angola presente, sentiriam que o país, a “casa” que levaram e guardaram por décadas no coração, já não existe? Que se perdeu no crescimento? Que as amizades com amor e lealdade desvaneceram-se? Se não, então, o que diriam e veriam elas?

P.F.: Creio que as minhas avós nunca julgariam. Agora é como é, não diriam que os de antes eram melhores do que os de hoje. Temos de reconhecer que, se está assim, é porque todos contribuímos para chegar a este ponto. Os contextos são diferentes, se calhar, hoje, ser amigo é mais difícil, em certos lugares. Há alturas em que temos de chorar para ter a certeza que estamos vivos, mas as minhas avós iriam continuar apaixonadas por Angola, todavia, um pouco amarguradas face a certas mudanças. “Casa” é uma memória, um ideal, nem sempre é um espaço físico, por isso, o desejo eterno de voltar. E, quando voltamos, “casa já não é casa”…

Se a sua avó estivesse viva e ouvisse “Njila ia Dikanga”, que palavras lhe diria logo de seguida e, que emoções a invadiriam?

Y.C.: A minha avó, se estivesse a olhar para nós a ouvir esta música, ficaria certamente encabulada, mas com uma alegria enorme no coração. Ela não sabia ler nem escrever, mas a sabedoria que acumulou e partilhou connosco era gigantesca e, sem dúvidas que, com aquele português característico do município do Ebo, diria “capeta, sabes coisas, capeta”. (Risos). Ela é para mim o reflexo de uma imensurável paixão por Angola, o sentido de irmandade. As suas lições são o que me prende à luta pelas coisas da nossa terra, pelo amor e pelas pessoas, ainda hoje e até sempre.

Quantos temas musicais já gravaram juntos?

Y.C.: Relativamente a músicas gravadas e postas no mercado, por agora, são três, nomeadamente, “Rumba Nza Tukine”, de David Zé, “Kandengue Atrevido”, composição de Jorge Aragão e, desde Sexta-feira, 31 de Janeiro de 2020, “Njila ia Dikanga”, que é nossa.

“Njila ia Dikanga” é um single, ou simboliza uma porta que se abre para um álbum ou mais trabalhos em conjunto? Seja como for, elevou bastante a fasquia…

P.F.: Antes de gravarmos a “Njila ia Dikanga”, criámos outra, por estrear, que terá como título “Compadre”. É muito provável que transportemos o nosso convívio na vida real e em shows para um trabalho discográfico ,porque queremos criar esse repertório, que conte a nossa afinidade e história de vida e, assim, termos cada vez mais músicas juntos. Sobre a expectativa instaurada, a nossa amizade é a responsável por propiciar tudo isto e, julgámos que o Semba tradicional, ancestral, precisava da nossa presença com maior assiduidade.

Y.C.: O “Ti” Paulo merece o prémio de bem escrever!!! Pois, o talento que detém, a forma pessoal, tradicional, profunda, humana e artística com que acolheu as nossas ideias soltas sobre as nossas avós, e as reuniu nessa música, é realmente de se “tirar o chapéu” e dizer que é um homem imenso!!! O meu compadre é a pessoa que tinha de escrever essa nossa música. Virão outras!

“Muitos mudaram de vida, mudaram até o sonho que a gente sonhava”, Paulo Flores e Yuri da Cunha, que sonhos vossos foram perdidos para a vida? E quais aqueles sonhos que nunca nem nada poderá roubar de vós?

P.F.: Os meus sonhos não se mantiveram intactos, contudo, são o combustível que me dá forças para viver e escrever, logo, é impossível roubá-los. E, fico feliz porque, ao longo da vida, é possível vivermos momentos de sonhos. Essa música é a materialização de um desses raros e nobres momentos.

Y.C.: Os meus sonhos pairavam sobre a honestidade, verdade, levantar primeiro o nosso bairro, para começar a erguer Angola e, fazer prevalecer a nossa cultura, que detinha muitas belezas peculiares que, infelizmente, se desvaneceram, estão esquecidas e perdidas no tempo. Felizmente, conheci outras pessoas que tinham os mesmos sonhos, e acredito que, como diz a música do “Ti Paulito”, “era para ser nós todos”, logo, se continuarmos a fazer da nossa arte mensagens que sejam ouvidas, ajudaremos as pessoas a reencontrarem-se, iremos vencer, mantendo-nos juntos, todos.