Sérgio Luther Rescova, uma estrela fugaz

A última vez que vi Sérgio Luther Rescova foi em Luanda, os seus olhos cor de mel estavam a cintilar de alegria. Ele estava jovial, ainda com a sua aura agradável e naquele dia o tempo estava bom. Conversámos por cerca de 1 hora e voltei para Paris no dia seguinte. E há duas semanas, quando soube que estava hospitalizado, o tempo estava bom em Paris, o que é excepcional para um mês de outubro. Eu já tinha visto até um lindo arco-íris, cuja beleza havia se apoderado de mim com a sua magia, que fotografei e postei no Instagram e no Facebook para o imortalizar. Porque sabia que teríamos três dias de chuva seguidos. Sei disso desde a minha infância em Mbanza-a-Kongo, é um conhecimento ancestral e tivemos 3 dias de chuva em Paris. Mas na última sexta-feira foi a volta do frio e Luther morreu nesse dia à noite.

Quer tenhamos ou não partilhado as suas ideias, todos nós nos víamos neste homem que se parecia tanto connosco. Ficamos, pois, comovidos ao saber do desaparecimento de um dos rostos que encarnam o futuro do MPLA, um partido político importante do nosso país que deve reinventar-se. Quando a notícia se espalhou, algo estranho aconteceu dentro de nós. Era como um grande vazio. Foi como se de repente descobríssemos quão familiar a presença de Luther se tornara e como a sua juventude nos dava esperança para o futuro.

Como o Deus em quem Luther acreditava o fez partir num momento crítico do nosso país e do mundo, gostaria, na minha situação singular, de observador e amigo, que o seu desaparecimento, o de um jovem que personificava uma certa ideia de Angola, esperança e que foi uma das pessoas que humanizam o seu Partido, fosse um momento de reflexão. Como tantos jovens preocupados com o futuro de  Angola, que o conheceram e a quem inspirava a ideia de um possível começo de algo bonito apesar de todas as derivas dos dirigentes do país do seu partido, foi obviamente com dor que recebi a notícia da sua morte. E diria que se acreditávamos no Luther, era porque ele tinha a nossa idade e sabíamos que Roma e Pavia não se fizeram num dia. Podiase acreditar nele porque também amamos o nosso país e ele, Luther, sabia ir incitar e revigorar aquela chama decepcionada que está enterrada em nós. Não somos idiotas, ele sabia, mas podíamos dar-lhe crédito com mais facilidade porque era humilde e sabia como domar as animosidades tentando ser um político moderno e inteligente que sabia como colocar a empatia em primeiro lugar.

De qualquer forma, essa foi a minha experiência com ele. Portanto, podíamos acreditar nele porque emanava dele um contraste entre uma geração decadente e moribunda; que teve como principal sucesso a sua participação na luta contra o colonialismo e como o mais estrondoso fracasso a organização da pilhagem do nosso país e da pauperização dos angolanos, e de uma geração emergente, a sua; mais educada, urbana, com a qual podemos dialogar e que podia ir ainda mais longe se fosse mais corajosa e visionária. Porque, sem dúvida refreada e intimidada pela cultura dos mais velhos, esta nova geração ainda carece de capacidade de dar ao MPLA um rosto do século XXI, de abalar hábitos, de fazer compreender aos mais velhos que o seu tempo acabou e que a teimosia será inexoravelmente calamitosa para o Partido e o país. É uma nova geração que carece de visão e ousadia. Alguns desta geração até têm prazer em defender o indefensável no legado dos líderes deste Partido falido. Sim, já sabemos que a única coisa que a história nos ensina é que não aprendemos.

Mas certamente há lições a serem aprendidas com a maneira como os anciãos governaram o nosso país. Luther amava o seu partido com paixão, defendia-o com unhas e dentes, na sua beleza e na sua feiura. Era um político. Ele sabia, no entanto, que o Partido precisa recuperar o seu brilho perdido. Dizia isso francamente com uma humildade que denotava a conhecida arrogância do MPLA. No fundo e à sua maneira, era o seu país, Angola, que ele amava com paixão. Ele o queria grande, aberto, exemplar. E sabia que a nossa unidade ainda é frágil, sabia que a nossa história não é toda bela, já que nenhuma história de um país é toda bela.

Mas ele esperava que tivéssemos um Estado imparcial, acima de Partidos, facções, clãs, interesses. Na sua maneira de me dizer isso havia uma sinceridade comovente que dava uma força particular. Luther chamava-me de “Parisien” e respeitava as minhas reservas sobre a forma como José Eduardo dos Santos governou o país depois da guerra. Mas queria muito convencer-me a voltar ao país, a ir  dar a minha contribuição e participar na mudança, como ele dizia. Ele sabia que a adaptação não seria fácil para mim, mas acreditava que era a nossa geração que tinha a missão de devolver ao nosso país a dignidade que faltava. Respeitava os mais velhos, sentia que tinham feito a sua parte: içar a nossa bandeira. Para ele, cabia, portanto, a nós pegar a tocha e passá-la com a mão calosa para a próxima geração com uma conquista tão concreta quanto aquela legada pelos mais velhos. Esta era a sua mensagem para mim, desde as nossas primeiras discussões acaloradas nos anos 2000 todas as vezes que veio a Paris para participar nas conferências organizadas pela Casa de Angola. Quando ia a Luanda e antes dele deixar a liderança da JMPLA, recebia-me também no seu modesto gabinete na sede do Partido, onde nunca perdia a oportunidade de me mostrar a boa camaradagem que reinava até nas escadas e nos corredores.

Aproximamo-nos mais ao descobrir que tínhamos em comum Paulo Maza, que considero meu irmão e que é seu primo. Tudo isso cria um vínculo especial, onde há respeito pelo homem político e admiração pelo homem privado. Eu respeitava o seu percurso. Foi através dele que vi que o MPLA sabia confiar nos jovens, na nova geração de quem sem dúvida deve esperar um desempenho melhor do que a anterior. Em privado, ele reconhecia a necessidade de mudar o Partido e a sua maneira de governar o país. Sabia que as velhas mentalidades ainda têm uma força perigosa, mas sempre foi optimista para Angola. Luther recorria à História para alimentar o seu pensamento, mas não era um homem do passado, era um homem do presente e do futuro. Tinha a mente de uma pessoa que não era nem jovem nem velha, mas tinha uma mente cheia de juízo de velho e sabedoria de jovem. Teve a bravura e o sentido do dever pessoal que o tornaram disposto a enfrentar a difícil tarefa de governar Luanda e Uíge. Neste filho do Uíge, nascido a 16 de maio de 1980 em Damba, que foi Primeiro Secretário Nacional da JMPLA, de 2009 – e reeleito – até 2019, membro do Conselho da República, Bureau Político e Comité Central, parlamentar, a partir de 2008, governador de Luanda, de Janeiro de 2019 a maio de 2020, e que na altura da sua morte era governador do Uíge, desde maio de 2020, existia um destino angolano que foi abreviado. Foram anos de conquista, energia e entusiasmo.

Foram anos de lealdade e de algumas decepções também. Hoje sentimos por ele um carinho fraterno e até filial. Se amamos verdadeiramente o nosso país, se somos apaixonados por tornar Angola melhor para quem nos vai seguir, devemos ter a determinação de nos unir e levar avante o espírito de Sérgio Luther Rescova. Esta ocasião de profunda tristeza deve ser também uma ocasião de dedicação. Agradeçamos ao Universo e aos nossos ancestrais por nos terem dado o privilégio, mesmo que brevemente, de tê-lo. Porque agora ele está entre as grandes figuras que marcaram a história política do nosso país. Ficará a memória de uma vida, uma vida encurtada em que muitos angolanos ainda se identificam porque expressa bem o que o nosso país é no fundo de si mesmo. Quero dizer aos seus pais, a esposa, aos filhos, ao Paulo Maza, ao Tio Modesto Laurentino e a toda a sua família, que a vossa dor é minha. Luther era um homem bom. Muitos sentirão a sua falta. Yoyo, e-nkundi-ame! Wenda kia mboté! (Adeus, meu amigo! Boa viagem!)

 

É Pan-africanista, afro-optimista radicado em Paris, França.

É colunista do diário Público (Portugal),

Cofundador do instituto République et Diversité que promove a diversidade em França e é empresário