A voz de um parto no calvário

A voz de um parto no calvário

O ano era 1980. Ou um pouco antes, talvez, ou um pouco depois, não sei.

A f i g u ra-s e-no s apenas como relevante saber que foi depois da independência de Angola, quando a Geração da Utopia já tinha vencido o Mayombe e o que restava era a construção da tão desejada cidade ideal, da torre de babel.

Quais quê?! Independência, sim, mas não é o mesmo que dizer paz ou desenvolvimento; só o vagabundo pastor alemão que em tempos era burguês e agora um proletário, assim como o chamou o poeta Tico, este que se gabava de ter um poema publicado no jornal e fazia algumas citações de Marx; mais o porco que nasceu a beiramar, e que sabia à peixe, mas que, depois que foi levado a morar com os homens nosétimo andar de um prédio qualquer de Luanda, ia aos poucos se aburguesando.

Descendente dos tugas, que já tinham ido à Melói, fugindo das catanas que se iam erguendo desde 61, o cão pastor-alemão vagueava pela Mutamba abaixo, cheirando as pessoas que passavam, seguindo os transeuntes, vivendo em várias casas e tendo várias experiências, observando toda a sorte de relações e brigas, sendo vítima de carinho ou desprezo. Teve vários nomes: desde Leão dos Mares, Cupido, Jasão e tantos outros mais que por quaisquer razões Pepetela não nos revelou.

Mas era, no fim das contas, o que restou da herança portuguesa. Quais significados se podem abstrair das duas obras?

A priori, são dois os modos por meio dos quais podemos interpretar as mesmas: a significação literal artística e a sociopolítica.

A primeira, a literal artística, penso ser a maneira como o grosso dos leitores vê os livros literários: como meros textos narrativos, com uma estória a ser contada.

Uma é a de um cão que anda pela cidae de Luanda, vivendo várias experiências.

Outra é a de um porco que é “guardado” na varanda de um apartamento, contra as regras da comissão de moradores, mas que aguarda pelo seu fuzilamento.

E para o manter quieto, Diogo mais os filhos e a mulher resolveram-lhe colocar auriculares nos ouvidos, com o som do rádio muito alto, como quem se entretém enquanto o mundo a sua volta desaba.

E como não bastou, banho e boa comida – tudo para um porco. Mas um texto narrativo (e por extensão o texto literário) não é só uma construção linguística, com palavras colocadas uma depois da outra.

Éantes de mais uma descrição de uma situação, de uma experiência, própria da vida ou da observação do escritor, e que por isso vale a pena escrever sobre.

Com muitos fins, é claro: e aqui entramos para a significação sóciopolítica.

Já se sabe que depois da independência, Angola era uma “nação”(aqui as aspas por não ser a Angola da época uma nação verdadeiramente) próspera e produtora de milho e café, que se tornaram símbolos da riqueza.

Depois de 75, o ambiente era caótico por estar toda a produção agrícola e industrial nas mãos do estado e é o estado que fazia a distribuição.

Não se podia esperar outra coisa de um país que estava a ser construído sobre uma base marxista-leninista.

Todo esse ambiente, toda essa situação, é bem descrita nos dois livros, como pano de fundo, passando a servirem como documentos históricos.

Mas podemos ir mais adiante: sabendo que os dois escritores têm alguma formação socialista, não seriam os dois livros uma resposta à contrarrevolução?

No caso de Manuel Rui é mais claro e evidente.

E porque se comia o que se conseguia nas famosas filas, e raramente se conseguia carne, entra em cena o porco que é mais tarde chamado «Carnaval da Vitória».

Mas porque vai se aburguesando, Diogo diz:

“Faca, é o fim de todos os burgueses”. Será o porco uma representação da nova burguesia que se ia criando, contra a qual os revolucionários afirmavam lutar?

Na história da literatura já muitas vezes os animais foram usados: para lendas ou fábulas, com a intenção de transmitir alguma lição ou para satirizar alguma situação.

Assim o fizeram igualmente Pepetela e Manuel Rui, ao usarem um cão e um porco como instrumentos de narração.

As duas narrativas se distanciam pelo estilo. Uma é uma escrita polifónica que reúne contos, teatro e crónicas, a outra é uma novela com uma narrativa linear.

Mas se aproximam por pertencerem ao mesmo período, o da construção de Angola, e, portanto, abordarem a mesma situação, que é a da criança que acabava de nascer, cheia de sonhos, mas que se encontrava rodeada de adultos repletos de ambições:

o que muitos alegavam estar a combater é no que se tornavam – talvez seja isso que nos quer dizer a estória do cão e a do porco.

 

Por: ISMAEL CHIPULULO