Domingos das Neves: “A Igreja Católica não tem como finalidade o alcance do poder político”

Domingos das Neves: “A Igreja Católica não tem como finalidade o alcance do poder político”

Domingos das Neves é jurista, docente da Universidade Católica e director do Centro de Estudos Populorum Progressio’(CEPP). É laureado pelo Institutum Utriosque Iuris da Pontifícia Universidade Lateranense do Vaticano, onde obteve um master em Relações Internacionais na Faculdade Pontifícia Seraphicum de Roma. Em entrevista a OPAIS, o académico fala do momento de crispação que envolve a Igreja Católica e alguns sectores da sociedade angolana, avalia o momento político actual, fala dos discursos da fraude, do funcionamento da CNE, da recente revisão da Constituição e da falta de democracia interna no MPLA e a UNITA que, no seu entender, atenta contra a qualidade do debate político que se pretende

Numa fase que o país prepara-se para as eleições de Agosto próximo, qual é a análise que se pode fazer do debate político?

Está péssimo, sem espaços suficientes e com fraca qualidade de ideias objectivas.

Como assim?

Ainda estamos longe e com algum medo de criar discussões públicas sobre aqueles assuntos que a todos dizem respeito. Esse medo existe nos partidos políticos, nas instituições públicas, nas igrejas, nas associações cívicas e culturais, nas famílias e nas universidades.

E quais são as consequências destes medos?

Nefastas, como é óbvio. Portanto, um país que não cria espaços para favorecer as discussões de ideias está condenado ao fracasso. Temos que fazer a terapia de expulsar os medos que nos perseguem de modo a dar lugar à terapia de saber ouvir os outros.

Considera haver assuntos que acabam por ficar para trás face a esses medos que se refere?

Claramente. É que estamos a nos aproximar das eleições, mas há coisas fundamentais que não estão a ser discutidas conveniente entre os actores políticos, na sociedade civil, nos meios de comunicação social, como, por exemplo, a questão dos observadores nacionais e internacionais, o próprio registro eleitoral ou a sua actualização, a expansão e o funcionamento dos BUAP’s, a questão de um presumível cidadão nacional não possuir bilhete de identidade, que é o que lhe confere legalmente à nacionalidade e obter o registro eleitoral mediante prova testemunhal.

Mas tudo isso em função das eleições que se avizinham?

Sim, exactamente…

A meio a toda essa agitação e tensão, a Igreja Católica está a ser acusada como estando a imiscuir nos assuntos políticos que é fora da sua esfera de actuação. Estamos diante de um novo ente-político?

Esta é a tendência de pensamento errado de algumas pessoas e entidades estatais. Estão a criar uma certa confusão, confundindo as intervenções da Igreja Católica como o imiscuir nos assuntos políticos.

Os discursos não apontam para esta direcção?

Longe disso. O problema é que as pessoas estão equivocadamente interpretar o princípio da imparcialidade do Estado.

E a colagem que, esta semana, foi muito abordada, o suposto alinhamento do discurso da Igreja Católica a certos partidos na oposição?

Não tem nada de verdade essa abordagem. A Igreja Católica e os bispos católicos, pelo facto de estarem enraizados nas realidades terrenas e nas respectivas sociedades que coincidem com os Estados, não podem se desinteressar das realidades onde vivem e cooperam com ações sociais, de caridade e assistência espiritual, porque faz parte das bases que a sustentam.

Sem a observância dos limites? Mas que limites?

O anúncio do reino dos céus e a salvação das almas, que é objetivo e finalidade da Igreja Católica, não anulam uma das bases da sua natureza que é denunciar as injustiças para propor o bem-comum, porque é isso o que o seu mestre e fundador fez quando esteve cá na terra.

Mas interessa a igreja que esteja no poder o partido A ou B?

A igreja não tem como sua finalidade a prossecução do poder. A igreja defende a justiça social. E as pessoas se esquecem que os cristãos são igualmente cidadãos com direitos e deveres como todos os outros cidadãos.

Mas então porquê destas conotações?

Não sei. Mas o que a Igreja Católica faz, na voz dos bispos, e na recentemente mensagem da CEAST, tornada pública no dia 07 Fevereiro, é sempre o apelo ao diálogo entre os actores políticos, o respeito pelas leis justas, a observância do Estado de direito, a observância das garantias democráticas e a segurança dos cidadãos. Esses apelos são, de certa forma, a justa interpretação das aspirações de muitos cidadãos.

Esses apelos podem ser considerados como uma porta aberta ao diálogo?

Claro que sim. Não pode existir democracia autêntica sem diálogo franco e aberto sem auscultação pública. Infelizmente, até na nossa constituição, há graves lacunas sobre a aplicação do instituto referendário, que é uma das formas mais autênticas de consulta pública. Portanto, falta de diálogo político faz deficitária a democracia.

Mas o ambiente pré-eleitoral deve ser sempre encarado nesta perspectiva tensa ao invés da festa da democracia?

Isso ocorre quando entendemos que a democracia é uma festa só quando há eleições. As eleições são somente uma das etapas da vitalidade democrática. A democracia ou faz parte da nossa vida de todos os dias ou então não é democracia.

Não é teórico pensar nesta perspectiva?

Obviamente, não. Entretanto, não existe democracia sazonal. Ela, a democracia, tem de ser plena e vital.

Isso significa exactamente o quê em termos práticos?

Isso significa que a democracia é garantir e respeitar as leis justas, é conviver e trabalhar com as diferenças ideológicas, é partilhar os mesmos espaços e oportunidades para todos e respeitar os pactos.

E o debate democrático angolano não respeita essas premissas?

Infelizmente não. Ou seja, democracia e eleições não podem ser traduzidas nem reduzidas em tensões, arruaças, acusações infundadas, agressões e insultos. A questão é muito mais grave quando esse comportamento provém de agentes políticos, que devem sempre servir de base de exemplo.

Aqui o MPLA e a UNITA, enquanto maiores partidos, constituem essa base de exemplo à que se refere?

Quer o MPLA quanto a UNITA ambos nasceram num contexto próprio como movimentos de guerrilha anti colonial e desde aí orientados também sob forma monocratica. Quer num partido quanto no outro as expressões democráticas são alheias às suas gêneses. Foi com o advento da queda do muro de Berlin, em 1989, que mudou o cenário e o contexto geopolítico no mundo. Estes nossos dois grandes partidos políticos tiveram que se adaptar aos novos contextos políticos, onde a democracia era um dos imperativos.

Mas essa adaptação é um processo normal?

Essa adaptação, de monocratico para democrático, é, a meu ver, ainda um parto muito difícil dentro destes dos partidos políticos, mesmo que se lhes reconheça algum esforço. A democracia interna nos partidos políticos é o que confere credibilidade aos respectivos partidos e, consequentemente, à esfera política nacional. Não temos outra alternativa para a credibilidade das instituições do nosso país se não democratizarmos internamente os partidos políticos, dos mais antigos aos mais recentes.

É esta falta de democracia interna nestes dois partidos que está agudizar a tensão política na actual fase pré-eleitoral?

Acho que sim. O que falta, a meu ver, é exactamente a tomada de consciência, por parte dos agentes políticos, de que é necessário que se transmita aos cidadãos uma nova forma de consciência responsável nos actos e nas ações dos próprios partidos políticos. Portanto, as tensões políticas são normais, mas é necessário ter presente o nível de responsabilidade de cada actor político.

Os estudos de processos eleitorais dão exemplos claros que os níveis de tensão podem contribuir para um maior número de abstenção. Posto isso, não considera estarmos a caminhar para o perigo?

Sim, infelizmente. Os agentes políticos nem sempre estão conscientes da sua gravíssima irresponsabilidade para com a cidadania. Infelizmente, nem sempre os partidos políticos e os agentes políticos demonstram o interesse necessário para com essa dimensão cívica de cidadania, que é o exercício do voto, a menos que isso seja intencional, desencorajar os cidadãos ao voto, para de alguma forma manter um status-quo do cenário político.

Como inverter o cenário na eventualidade de haver algum plano estratégico neste sentido?

inversão do cenário depende muito do grau de consciência da cidadania por parte das pessoas. Quanto mais consciência cívica e de cidadania tivermos, mais capacidade de fazer pressão sobre os políticos teremos. Não temos outras alternativas que não seja a consciência cívica e responsável por parte dos cidadãos.

Considera termos um bom combate político tendo sempre na linha da frente o MPLA e a UNITA no centro das discussões?

É normal. Noutros países há disputas semelhantes entre dois grandes polos partidários. Isso depende muito da configuração política na definição dos cenários democráticos.

Não dá a falsa ideia do controlo do jogo político-eleitoral?

Penso que não. O importante é que esses dois grandes partidos políticos não se iludam com a ideia perpétua de serem os únicos e os mais importantes actores políticos deste país. Em democracia não há exclusividade e ditaduras hegemónicas partidárias, pois é um contra senso das liberdades políticas.

Noutra abordagem assiste-se, a cada vez mais, o enfraquecer de partidos como FNLA, PRS e agora a CASA-CE. Esses devem ser sempre vistos como os ‘enchidos’ do combate eleitoral?

Essa perspectiva depende muito de cada um dos respectivos partidos políticos, da forma como se posicionam no cenário político nacional.

Como assim?

Não acredito que estes partidos políticos possam ter pretendidos e se contentados a servirem de actores políticos secundários nos pleitos eleitorais, porque, a ser assim, um dia podem desaparecer do cenário político nacional. Mas também temos que convir que há muitas dificuldades para os pequenos partidos políticos mobilizarem e angariarem os necessários recursos financeiros para as suas actividades políticas, o que de certa forma impede uma ação mais eficaz que permita melhores resultados nas eleições.

“Temos uma sociedade civil bastante incipiente ainda”

E qual é a avaliação que faz dos outros intervenientes interessados no processo eleitoral, como a sociedade civil? Temos uma sociedade civil bastante incipiente ainda, incapaz de criar sinergias para se afirmar com decisão no cenário político.

Não será a conjuntura actual?

Talvez sim, talvez não. As expressões da sociedade civil são de natureza livre na sua origem, de modo a garantir a sua liberdade de ação. Infelizmente, a tendência aqui é que se constitua uma sociedade civil que seja expressão das vontades e do controle dos partidos políticos.

Há fundamentos para se pensar assim?

Está tudo óbvio. Infelizmente, a actividade da sociedade civil ainda é muito condicionada por influências e interferências dos partidos políticos. É só ver que a própria lei não permite que hajam candidatos de grupos cívicos para o parlamento. E isso não garante resultados satisfatórios para a cidadania. Há toda necessidade de se imprimir uma cultura mais atuante e incisiva das articulações da sociedade civil.

A comunicação social tem um papel importante neste processo de construção de diálogos?

Obviamente. Alias, é parte de todo esse processo.

No actual momento, que avaliação se pode fazer deste actor social?

De uma maneira geral é um desempenho péssimo dos órgãos públicos de comunicação social

Porquê?

Há uma clara lesão do direito à liberdade da pluralidade de informação. Os poucos meios de comunicação social privados se sentem inseguros diante de tamanha pressão política. Assim fica difícil construir um Estado igualitário, como um valor constitucional. Ainda vamos a tempo. Cabe aos jornalistas terem consciência sobre o peso de responsabilidade que transportam nos seus ombros. Os valores da liberdade são absolutos e, por isso mesmo, inegociáveis.

“Os políticos usam a política para satisfazer os seus interesses pessoais”

Os principais partidos apresentaram, recentemente, as suas agendas políticas para as eleições de 2022, quando problemas estruturantes como a seca, pobreza e outros ainda persistem. Considera uma utopia as agendas políticas dos partidos?

As apresentações das agendas políticas dos partidos políticos são um marco interessante. Mas isso seria mais atraente se os partidos políticos promovessem discussões públicas sobre o conteúdo das suas agendas. A não ser assim, para mim não vejo essas apresentações com interesse algum.

Essas agendas políticas estão à altura dos interesses do país?

Infelizmente não. Grande parte dos políticos usam a política para satisfazer os seus interesses pessoais e de grupo, sem ter em conta as aspirações dos cidadãos.

Isso acaba por desacreditar a essência da política?

Sim, sem duvidas. Daí a razão do descrédito dos políticos diante dos cidadãos. Na política, há uma crise de valores, o que condiciona em muito o respeito pela dimensão ética na vida da nação.

“Deveria haver uma profunda revisão constitucional” A recente revisão da Constituição abriu espaço para a consolidação desse espírito de nação de forma integrada?

Por um lado sim. Sobretudo na questão do voto no estrangeiro. A meu ver, tem nisso um aspecto positivo, que é a possibilidade de os cidadãos angolanos no exterior votarem. O que peca é que esse direito, numa primeira fase, não ser extensivo à todas as comunidades de cidadãos angolanos no exterior.

E os aspectos relacionados ao poder do Presidente da República, que é uma questão que divide os constitucionalistas e os políticos?

O que penso é que deveria haver uma profunda revisão constitucional e não esses remendos pontuais. Não podemos criar o hábito de ir fazendo remendos às pressas, porque,  como diz um axioma local, à pressa estraga .

Considera ter havido pressa na revisão da Constituição?

Sim, infelizmente. Temos que ter o dom da paciência. Paciência a trabalhar e paciência a escutar. Os nossos ancestrais resolviam os problemas das suas comunidades com paciência e sem pressa. Se ouviam com paciência todos os intervenientes. Era a forma de viver a democracia como valor comunitário. Não podemos recuperar esses valores?

Está a querer dizer o quê exactamente com isso?

Portanto, penso que a revisão da Constituição poderia ser melhor e mais profunda. Me pareceu um processo superficial e sem grandes discussões públicas fora do circuito político.

Que aspectos acha que deviam ter sido mudados no âmbito da revisão constitucional?

Penso que seria urgente rever a forma de participação democrática nas eleições. As candidaturas indepen

“A CNE é importante para a credibilidade e lisura do processo eleitoral”

A suspeição do clima de fraude por parte da UNITA, mesmo sem antes se ter organizado as eleições, pode representar um perigo a estabilidade que se pretende antes, durante e depois das eleições?

A UNITA é uma força importante no cenário político. Como maior força da oposição política, tem de afinar os instrumentos legais para fazer denúncias fundamentadas sobre o que acha suspeito.

E o sentimento da vitória do MPLA, que considera já estar tudo ganho, não é um outro problema?

Pode ser uma estratégia política para amedrontar os seus potenciais adversários. É interessante…

As contestações que a oposição faz em torno do funcionamento da CNE, sobretudo as desconfianças do seu presidente, poderiam ter sido melhor equacionadas?

A inteira oposição se limita a contestar nos corredores. Precisa trazer à tona a discussão pública sobre este assunto, por exemplo, nas universidades. Hoje temos em Angola uma classe universitária com alguma expressão. Porquê não explorar esse recurso para discutir esse assunto, se é mesmo um problema político?!

De que formas?

Eu não conheço nenhuma   democrática que não discuta um problema público, como é o caso, por exemplo, do funcionamento da CNE, importantíssimo para a credibilidade e lisura do processo eleitoral.

E qual é a avaliação que faz do processo de registo eleitoral?

Tenho recebido notícias de fontes fidedignas de que há ainda muitas insuficiências que, a meu ver, vamos a tempo de suprir e melhorar.

A não melhoria destas insuficiências pode reforçar o clima de desconfianças?

Sim. Acho que um processo de registro eleitoral conduzido com muitas insuficiências pode dar lugar a desconfianças de fraude eleitoral. É necessário encontrar caminhos alternativos para corrigirmos o que está mal e melhorarmos o que está bem.

E isso passa por aonde exactamente?

A experiência do tempo deveria conferir maior credibilidade ao nosso processo eleitoral. Isso se faz com a intensidade do diálogo entre as pessoas e as instituições, visando a salvaguarda dos valores do Estado, plasmados nos nossos princípios constitucionais, que devem estar acima de qualquer outro interesse individual ou de grupos.